Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu universidade

Reconstrução da ciência brasileira, arrasada pelo bolsonarismo, vai exigir ousadia

A expressão 'terra arrasada' descreve bem as ondas de doidice e desprezo que se abateram sobre a comunidade científica nos últimos quatro anos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Qualquer pessoa com a cabeça no lugar que tenha algum contato com a ciência brasileira indubitavelmente está soltando vários suspiros de alívio com a chegada de 2023. A expressão "terra arrasada" descreve bem diversos aspectos do finado governo Bolsonaro –já a usei nesta coluna antes, admito– mas ela é particularmente precisa para definir as ondas de doidice, desprezo e estrangulamento de recursos que se abateram sobre a comunidade científica nacional nos últimos quatro anos.

Tal abismo não se abriu aos pés dos cientistas brasileiros apenas pela falta de financiamento, é bom que se diga. Em todos os governos desde a redemocratização, os aportes federais dedicados à pesquisa sempre oscilaram ao sabor das idas e vindas da economia.

Interior do Projeto Sirius, acelerador de partículas de Campinas - Bruno Santos - 14.nov.18/Folhapress

Embora os governos Lula e Dilma 1 tenham comandado uma vigorosa expansão desse financiamento e da rede de universidades públicas, a crise econômica a partir de meados da década passada fez com que cortes sérios já começassem no segundo mandato de Dilma. Temer e Bolsonaro aprofundaram essa tendência, com o agravante da pandemia no caso do último presidente –no total, o orçamento da área foi reduzido quase pela metade entre 2015 e 2021.

Reitero, porém, que o dinheiro escasso talvez tenha sido o de menos. Bolsonaro foi eleito com base numa plataforma de ódio ao conhecimento, filha-coruja do olavismo –só não viu quem não quis. Na Presidência da República, suas declarações pintaram o tempo todo as universidades públicas, responsáveis pela quase totalidade da produção científica do Brasil, como repartições ociosas e inúteis, na melhor das hipóteses. Ou, na pior, como antros de "comunistas" cuja única preocupação seria enfiar rapazes e moças num único banheiro.

Não dá para subestimar o estrago que um retrato tão despropositado quanto esse é capaz de causar no inconsciente coletivo nacional, ainda mais quando se leva em conta que a popularidade do bolsonarismo está longe de desaparecer de uma hora para outra. Ao mesmo tempo, do ponto de vista financeiro, a situação da ciência brasileira deve melhorar, mas parece improvável que os tempos de relativa bonança de 2015 retornem magicamente.

Isso significa que vai ser preciso jogar, e bem, em pelo menos duas grandes frentes. Primeiro, não dá para fugir da tarefa de reconstruir as pontes entre a comunidade científica brasileira e a população que a financia.

O esgoto político que confluiu no bolsonarismo solapou os alicerces dessas pontes, não há dúvida, mas elas já andavam bambas por outros fatores, infelizmente. Mesmo com o impacto positivo das cotas raciais e sociais, por exemplo, não é difícil encontrar jovens que vivem do lado de universidades federais ou da USP e acham... que é preciso pagar mensalidade para estudar ali dentro. Se nem a função mais básica das universidades parece pública para a população, é quase certo que seu papel na produção do conhecimento não tem aparecido (de fato, é o que mostram as pesquisas de opinião sobre o tema).

Ao lado de uma ofensiva de comunicação científica, é preciso enfrentar os desafios sobre como investir recursos inicialmente modestos. A aproximação com a iniciativa privada não pode ser vista como panaceia –ciência básica, em qualquer lugar do mundo, é feita majoritariamente com dinheiro público–, embora talvez ajude. Em vez da grande pulverização de recursos que sempre predominou, uma possibilidade seria apostar num número menor de projetos, com mais riscos envolvidos, mas também com retornos potenciais mais elevados para o avanço do conhecimento e para a sociedade.

Por fim, um novo governo de esquerda deveria ao menos pensar em mudanças na situação trabalhista precária dos mestrandos e doutorandos que carregam o piano nos laboratórios brasileiros. Iniciar uma carreira científica precisa deixar de parecer um tipo de sacerdócio ou trabalho quase voluntário.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.