Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Reinaldo José Lopes

Crença na imortalidade transforma bilionários em profetas apocalípticos sem Deus

Sujeitos também creem no desenvolvimento de uma inteligência artificial similar ou superior à humana

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Não resisto à tentação de começar esta coluna repetindo uma piada clássica sobre os primórdios da computação. Dizem que, nos anos 1950, quando os EUA puseram seu primeiro supercomputador em funcionamento —um monstro valvulado, maior do que a maioria dos apartamentos paulistanos de hoje—, o presidente Dwight Eisenhower (1890-1969) teria perguntado à máquina se Deus existia. A resposta: "Agora existe".

Pois bem: anda difícil escapar à sensação de que, quando o assunto é inteligência artificial, tem muita gente poderosa por aí concordando com o interlocutor de Eisenhower. Os investimentos bilionários na área, com toda aquela aversão clássica a críticas ou regulação externa tão cara ao Vale do Silício, frequentemente se fazem acompanhar da crença de que seria desejável e/ou inevitável desenvolver inteligências artificiais similares ou superiores à humana em breve. Pra ontem, se for possível.

E a coisa não para por aí, é claro. Circulou nesta semana, pelas redes sociais, o apelo de um desses futurólogos para que obtenhamos o máximo de gravações de áudio e vídeo dos nossos entes queridos já idosos. O motivo: com os avanços da IA (vou ter de abreviar esse negócio, não vai ter jeito), em breve poderemos usar esses dados para criar simulações computacionais extremamente realistas de quem nos deixar. Quer falar com o finado vovô? É só baixar este aplicativo aqui, ó.

O bilionário Elon Musk - Jim Watson - 10.fev.22/AFP

Ou seja, os sujeitos não apenas querem confiar à IA a tarefa de criar Deus —ou alguma coisa muito superior a um ser humano, pelo menos— como também acham que ela vai abrir as portas da imortalidade.

Depois de respirar fundo, rezar um pai-nosso e uma ave-maria e assim domar meu instinto de cobrir de cadeiradas quem defende esse tipo de coisa, dei-me conta de algo curioso. A nova heresia dos devotos da IA não passa, no fundo, no fundo, de uma versão secularizada —portanto, (superficialmente) não religiosa— de uma das vertentes mais antigas da teologia cristã: o milenarismo.

Simplificando brutalmente uma discussão teológica que poderia ser um livro, podemos dizer que uma das grandes inspirações do milenarismo é a narrativa em ritmo de videogame do livro do Apocalipse, o último da Bíblia. Também é comum, hoje em dia, que essa corrente de pensamento se manifeste por meio da crença no arrebatamento, suposto momento dramático em que os verdadeiros cristãos seriam arrebatados ao céu de corpo e alma. (Não é por acaso, aliás, que a ideia de fazer o "upload" da consciência humana para um computador tenha sido apelidada de "arrebatamento geek".)

Em comum com o milenarismo cristão, as crenças dos devotos da IA (e também a dos que acham que a biotecnologia será capaz de produzir alguma forma de imortalidade biológica) têm como corolário a possibilidade de um reino dos céus a ser vivenciado em breve, aqui mesmo na Terra.

Há outra semelhança ainda mais perturbadora: o sectarismo. Enquanto os milenaristas cristãos acreditavam (e alguns ainda acreditam) que só um punhado de eleitos de Deus terá acesso às chaves do reino, o paraíso dos devotos da IA e da biotecnologia é de quem puder pagar por ele.

Não estou convencido de que seja possível criar uma IA com inteligência similar ou superior à humana, e me parece praticamente certo que a busca pela imortalidade biológica ignora aspectos básicos do funcionamento dos seres vivos. Mas, mesmo que tais ideias fossem exequíveis, o essencial é perceber que elas brotam do que há de mais escroto na natureza humana. Além disso, vale ressaltar que todas as tentativas de milenaristas para exercer poder no mundo real terminaram em desgraça para todos os envolvidos. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.