Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Conexão Gibraltar

Genômica mostra conexão milenar entre povos ibéricos, africanos e do Oriente Médio

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"Pergunto-me que tipo de povo vivia em Portugal e na Espanha antigamente, muito antigamente, antes dos romanos, ou dos cartagineses. Antes de todos os outros. Pergunto-me o que pensou o primeiro homem a ver o mar ocidental [o Atlântico]." É o que diz consigo mesmo o jovem Alboin Errol, personagem do romance "A Estrada Perdida". Trata-se de uma das muitas obras que J.R.R. Tolkien (1892-1973), autor de "O Senhor dos Anéis", começou e não terminou de escrever antes de publicar seu best-seller.

Tal como o escritor britânico, Alboin é obcecado por línguas antigas e arqueologia, pelo que chama de "desejo de voltar" — para o passado profundo, é claro; quem, em sã consciência, ia querer viajar para o futuro quando pode recuar milhares de anos no tempo? (Perdão, esse sou eu falando, mas acho que representa bem Tolkien.)

tendas em meio a deserto de areia
O estudo mostra que uma antiga população da região do Marrocos estava se misturando a uma onda migratória ligada aos povos que então habitavam as terras ibéricas - Divulgação

O manuscrito de "A Estrada Perdida" data do fim dos anos 1930, o que significa que Alboin Errol/Tolkien não fazia(m) ideia do futuro surgimento de um negócio chamado arqueogenética — a capacidade de analisar o DNA de pessoas mortas há milênios. (Aliás, nem o papel do DNA no processo da hereditariedade era conhecido na época. Como se vê, era outro mundo.) Apesar da fobia do autor — muitas vezes justificada — ao avanço tecnológico, é bem possível que ele ficasse fascinado com o que um novo estudo genômico revelou justamente sobre a encruzilhada do Atlântico que ele menciona na passagem acima — num período muito, muito anterior ao dos romanos e cartagineses.

A pesquisa em questão saiu recentemente no periódico científico Nature e, na verdade, abrange principalmente a conexão entre a península Ibérica e o território africano adjacente a ela, do outro lado do estreito de Gibraltar, no atual Marrocos. Os dados de DNA ajudam a mapear o que aconteceu nesse trecho do norte da África entre 7.500 anos e 6.000 anos atrás, quando os povos do local passavam pela chamada transição do Neolítico — ou seja, abandonavam a caça e a coleta para se dedicar ao plantio e à criação de animais.

Se a região hoje é marcada pelo fluxo migratório da África para a Europa, a situação no Neolítico era exatamente o inverso. A análise do DNA de nove indivíduos do Neolítico marroquino mostra que uma antiga população norte-africana (radicada ali desde pelo menos 15 mil anos antes do presente) estava se misturando a uma onda migratória ligada aos povos que então habitavam as terras ibéricas.

O cenário, porém, é ainda mais complicado do que o parágrafo anterior dá a entender. O estudo da Nature, liderado por Cristina Valdiosera, da Universidade de Burgos, na Espanha, e Mattias Jakobsson, da Universidade de Upsala, na Suécia, indica que os recém-chegados ibéricos eram, por sua vez, majoritariamente descendentes de outros imigrantes, de origem anatólia (ou seja, vindos da atual Turquia e adjacências).

Esse grupo da península ibérica parece ter trazido consigo o cultivo de cereais como a cevada, bem como a criação de gado — mas nem sempre. Alguns nativos do norte da África adotaram independentemente esse pacote agropastoril do Neolítico, mas sem a miscigenação com os recém-chegados, provavelmente por difusão cultural das técnicas de plantio e pastoreio.

Resumo da ópera: muitos dos marroquinos do Neolítico eram, geneticamente, algo como 20% norte-africanos, 70% anatólios e 10% caçadores-coletores europeus. E essa mistura ainda seria complementada por mais levas de gente do Oriente Médio mais para o fim do período.

Cá entre nós, esse tipo de informação, cada vez mais abundante, lança uma luz completamente diferente sobre a história étnica da nossa espécie. Somos nômades e mestiços desde sempre. E esse pode ser um pensamento encorajador.

PS – A tradução do trecho de "A Estrada Perdida" citada no início da coluna é de Gabriel Oliva Brum.

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