Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes

Calor de ficção científica

Temperaturas estapafúrdias dos últimos dias são aperitivo do que acontece quando empurramos clima rumo aos extremos

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A bizarrice climática dos últimos dias me lembra uma cena de "Deuses Americanos", romance do britânico Neil Gaiman. Shadow, o taciturno protagonista do livro, acaba de se mudar para uma cidadezinha do Meio-Oeste americano no auge do inverno e, ao tentar sair de casa a pé para comprar comida e roupas mais quentes, vai ficando cada vez mais assustado com a inclemência do frio. Aquilo parecia coisa de ficção científica, pensa Shadow consigo mesmo: algo saído das narrativas que imaginavam um "lado escuro" do planeta Mercúrio, gélido porque ali o Sol jamais dava as caras.

Shadow escapa de virar picolé humano graças à gentileza de um policial da região, que lhe dá carona. Nada indica que nós vamos ter a mesma sorte na hora de fugir do nosso cenário de ficção científica com sinal trocado. Qualquer pessoa que ache normal o calor que tem assolado o país nos últimos dias está precisando levar um safanão. "Nossa, mas agora tudo é culpa da tal crise climática? Sempre fez calor no Brasil", dirão tais sujeitos.

Convido quem me lê a se armar de paciência (eu, decerto, estou precisando) e tentar entender junto comigo por que esse tipo de objeção, ainda que pareça fazer sentido, é falaciosa ou, no máximo, irrelevante, mesmo que superficialmente verdadeira.

Um homem e uma criança se protegem do sol na sombra de um poste
Calor como o atual vai se tornar mais e mais provável e severo, a não ser que a gente tome juízo - Zanone Fraissat - 19.set.23/Folhapress

O sistema climático é um negócio complicado e multifatorial. Alguns fatores dos quais ele depende são de ordem astronômica e geológica e só se alteram de forma significativa na escala de muitos milhares ou até milhões de anos. São coisas como o vaivém dos continentes e a inclinação do eixo da Terra. É por causa desse segundo fator que, mesmo num mundo muito mais quente, invernos continuarão acontecendo (alguém explique isso para aquele gênio do Alexandre Garcia, porque eu já desisti de tentar).

Outros fatores podem ser muito mais pontuais: a intensidade das erupções vulcânicas pode esfriar a Terra por um ou dois anos, por exemplo. O mesmo efeito tinha a poluição particulada emitida por indústrias mais "sujas" no hemisfério Norte —um dos poucos efeitos negativos do combate à poluição foi perder o amortecedor de aquecimento trazido por essas partículas, que sumiu rapidamente quando essas indústrias passaram a ser mais reguladas.

No meio do caminho entre fatores de longuíssimo e curtíssimo prazo, temos ciclos com alguns anos de duração, como os fenômenos El Niño (culpado em parte pelo corrente forno planetário) e La Niña. Temos ainda simplesmente "ruído" —variabilidade natural difícil de atribuir a algum fator preciso, mas que pode piorar ou melhorar as coisas de maneira imprevisível no curto prazo.

E temos, é claro, o dióxido de carbono —um gás cujas propriedades físicas de "cobertor" da atmosfera são conhecidas, grosso modo, desde o século 19. Um gás cuja concentração na atmosfera aumentou 50% em dois séculos, por culpa nossa. Esse tipo de aumento, vale lembrar, jamais aconteceu com tal velocidade antes. E o gás carbônico emitido agora pode continuar influenciando a temperatura da atmosfera por mais de um século.

Tudo isso significa que atribuir ou não as atuais temperaturas estapafúrdias à emergência climática não faz a menor diferença. De um jeito ou de outro, a variabilidade natural do sistema vai continuar sendo empurrada para o lado vermelho do termômetro. O que significa que situações como a de agora vão se tornar mais e mais prováveis e severas —a não ser que a gente tome juízo.

Quem ainda nega esse fato é a)tapado; b)maluco; c)canalha; ou todas as anteriores. A esses é preciso lembrar que não dá pra instalar ar-condicionado na biosfera inteira, por mais que achem que o da casa ou do escritório deles resolve qualquer problema.

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