Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Reinaldo José Lopes

Domesticamos os cães ou será que eles e nós acabamos nos domesticando mutuamente?

Pode parecer conversa de maluco, mas humanos e cachorros compartilham uma série de características

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Estranhas são as emoções que acometem o coração do sujeito que vira tutor do seu primeiro cão depois de velho. E depois de já ter sido pai (de humanos) duas vezes, devo acrescentar. Levei a doguinha para ser castrada nesta semana e me senti deixando uma criança da família sozinha no hospital. Chorei? Chorei, óbvio.

"Nossa, mas que mania de tratar cachorro que nem gente. Só neste mundo Nutella de hoje mesmo!", resmungarão alguns. Mas os clássicos, lamento informar, estão do meu lado. Lucius Flavius Arrianus (86-160 d.C.), ou Arriano de Nicomédia, quando não estava escrevendo sua aclamada narrativa das conquistas de Alexandre, o Grande, trabalhava num tratado sobre cães de caça que diz o seguinte: "É melhor se eles puderem dormir com uma pessoa, porque isso os torna mais humanos, e porque eles se regozijam com a companhia de seres humanos".

Policial brinca com cachorro em festival em Kathmandu, Nepal
Policial brinca com cachorro em festival em Kathmandu, Nepal - Prakash Matehama/AFP

Trata-se de um daqueles casos em que a sabedoria greco-romana bate com a ciência moderna. De fato, a relação entre a nossa espécie e os cães é tão antiga e íntima que, em sentido muito real, eles se tornaram muitíssimo mais humanos do que qualquer outra criatura deste planeta. Isso é incontroverso. Mas e se o processo tivesse sido de mão dupla? E se, ao domesticar os tataravós dos cachorros, nós também nos domesticamos?

Se isso está parecendo conversa de maluco, a primeira coisa que você precisa saber é que tanto humanos quanto cães compartilham uma série de características que alguns pesquisadores chamam de síndrome da domesticação. Não, não é doença, ao menos não necessariamente –em grego, "síndrome" simplesmente designa traços que ocorrem ("drome") juntos ("syn").

Em suma, tanto nós quanto eles parecemos versões fetais ou recém-nascidas de nossos parentes "selvagens" –os chimpanzés e lobos, respectivamente. Para ser mais específico, membros de ambas as espécies temos coisas como faces mais curtas, ossos menos robustos, maior variabilidade de características físicas (como cor da pele/pêlos e tamanho). E também diferenças comportamentais: humanos e cães são mais sociáveis, menos agressivos e reativos e mais brincalhões, em todos os períodos da vida, do que lobos e grandes símios.

Outra pista significativa tem a ver com o momento em que essa transformação em versões mais fofinhas das nossas espécies parece ter se intensificado. Se os cães foram mesmo domesticados entre 30 mil e 20 mil anos atrás, como indicam algumas evidências arqueológicas e genéticas, isso corresponde à época em que a "síndrome da domesticação" começa a afetar com intensidade renovada o esqueleto dos Homo sapiens. Depois disso, os ossos da nossa espécie ficam muito mais "gráceis" (grosso modo, delicados), com mandíbulas e região dos supercílios suavizadas.

Por fim, não se pode negligenciar o fato de que aprendemos a nos comunicar com os cães (e eles conosco) olhando olhos nos olhos, algo que é visto como sinal de agressividade em praticamente todas as demais espécies de mamíferos. Cachorros, porém, aprendem logo cedo a seguir o olhar das pessoas ao seu redor, assim como os bebês humanos.

Não se pode descartar, é claro, que a simbiose entre seres humanos e cães seja um subproduto de outros processos que facilitaram o aparecimento da "síndrome da domesticação" entre nossos ancestrais, como o aumento da tolerância e das alianças entre grupos cada vez mais amplos de Homo sapiens. Mas é difícil não enxergar a aliança entre as espécies como, de todo modo, uma pecinha importante do quebra-cabeças da nossa humanidade. Nenhuma amizade dura 30 mil anos sem transformar a gente, afinal de contas. Ainda bem.

PS: dedico esta coluna, é claro, a você, Zelda.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.