Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Abrir mais espaço para as mulheres enriquece trabalho científico

Fala de chefe do CNPq esquece que elas sofrem com dois pesos e duas medidas

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Gente inteligente, decente e corajosa às vezes faz ou diz bobagens de grande porte –"e tá tudo bem", como diz a frase corrente na internet. Ou não tão bem assim, na verdade.

Em meio às trevas pré-pandêmicas do governo Bolsonaro, o físico Ricardo Galvão, então na chefia do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), não se curvou às sandices do então presidente, que dizia ver dados manipulados sobre o desmatamento na Amazônia.

Ao chamar Bolsonaro do que ele sempre foi —pusilânime–, Galvão foi exonerado. Hoje presidente do CNPq, principal órgão federal de fomento à pesquisa, o físico criticou quem pede mais equidade de gênero na ciência brasileira.

Isso aconteceu na semana que passou, durante um evento na Unicamp, no qual Galvão disse, por exemplo, que o movimento Parent in Science, voltado justamente para enfrentar as desigualdades de gênero na área, "atrapalha muito" ao propor medidas específicas para apoio a mulheres cientistas. Ele declarou ainda que as pesquisadoras "que são produtivas" não querem tratamento "paternalista". A fala estava disponível em vídeo na internet, mas foi tirada do ar.

O presidente do CNPq, Ricardo Galvão, cumprimenta o presidente Lula. Ambos são homens brancos de terno, com cabelo grisalho e recuando, e Galvão é mais alto
O presidente do CNPq, Ricardo Galvão, cumprimenta o presidente Lula - Pedro Ladeira/Folhapress

Um dos principais pomos da discórdia vem de antes da fala de Galvão –descrita como "inapropriada" e "deselegante" por ele mesmo, em nota oficial. Em uma avaliação da produtividade de uma pesquisadora que veio a público no fim do ano passado, um parecerista do CNPq destacou que as gestações da especialista provavelmente tinham atrapalhado seu desempenho e que ela poderia compensar isso no futuro.

O comentário ressaltou o fato de que, na carreira científica, assim como no mercado de trabalho como um todo, alguns são mais iguais que os outros, infelizmente. A necessidade que uma mulher e mãe tem de se dedicar à família, e em especial aos filhos, é julgada como corpo mole, falta de foco e incapacidade de lidar com os desafios da carreira. Não é difícil imaginar que essa visão seja ainda mais prevalente na ciência, tradicionalmente retratada como uma mistura de sacerdócio e competição implacável em nome da "excelência".

Trata-se, porém, de um jeito burro de lidar com a questão. Algumas coisas, de fato, não são da alçada de uma agência de fomento à pesquisa e dependem de mudanças estruturais na sociedade, como uma divisão de trabalho doméstico e de criação dos filhos mais equitativa entre homens e mulheres. (Vale ressaltar que cuidar de crianças é, disparado, a coisa que mais dá trabalho no mundo, embora em geral não seja trabalho remunerado.)

O que o CNPq e outras agências de fomento podem e devem fazer, no entanto, é levar em conta as especificidades da condição materna e feminina, bem como outras desigualdades estruturais, na hora de avaliar quem é produtivo.

Seria, inclusive, uma oportunidade para rever de maneira profunda um modelo ainda muito calcado em recompensar produtividade bruta, medida em número de estudos publicados, e menos em qualidade, impacto e ambição intelectual.

Um único estudo realmente inovador produzido por uma mãe ao longo de mais tempo talvez valha mais do que dez artigos cuspidos por um pesquisador que não teve de se preocupar em trocar fraldas.

E há ainda outra vantagem. Incluir perspectivas diversas na ciência é um caminho para produzir ciência melhor, porque impede que os vieses cognitivos de um subgrupo exclusivista de seres humanos sejam os únicos óculos com os quais tentamos enxergar a majestade dos fatos à nossa volta.

Galvão, aliás, mostrou que tem apreço corajoso pela majestade dos fatos. É preciso usar essa coragem para dar um passo além e mostrar que a ciência é ampla o suficiente para incluir a todos.

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