Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
Descrição de chapéu

Quem quer uma vida uau

O público-alvo de informerciais são aqueles cidadãos que, confrontados com dificuldades, gritam

RICARDO ARAÚJO PEREIRA

 

Ilustração para a coluna de Ricardo Araújo Pereira de 04.02.2018
Luiza Pannunzio

É fácil distinguir as pessoas que veem televisão de madrugada. Têm problemas auditivos, aversão a números redondos e coceira na cabeça.

Pessoalmente, não conheço nenhuma, mas os infomerciais indicam com muita clareza as características do seu público-alvo: têm um apresentador que grita, vende tudo a 49,90 e mostram cidadãos que, confrontados com dificuldades, coçam a cabeça.

Os comerciais mostram, por exemplo, uma pessoa que corta pão com uma faca romba. Normalmente, a pessoa está a esfarelar o pão num momento em que a sua vida decorre a preto e branco —e, depois de cortar as fatias mais horríveis da história da panificação, coça a cabeça.

É então que o apresentador lhe comunica, aos gritos, que conhece umas facas que cortam sapatos e custam apenas 49,90. Nesse momento, a pessoa passa a viver a cores e diz "Uau!" em estrangeiro, mas uma voz tem a gentileza de traduzir para nós e diz "Uau!" em português.

Entretanto, a urticária passou. Acontece o mesmo com esfregonas que absorvem a água toda, uau, ao contrário das que absorvem menos e dão coceira na cabeça. E frigideiras às quais nada gruda, uau, e aparelhos de ginástica que dão choques eléctricos na barriga, uau, e cera para polir o carro que resiste ao fogo, uau.

E a gente pensa como foi possível viver com restos de ovo frito no fundo do tacho, abdômenes que não eram sujeitos a electrocussão e veículos cuja pintura não sobrevivia a incêndios. Além da chaga na cabeça, de tanto a coçar.

Quem assiste a infomerciais caracteriza-se ainda por não ter qualquer sentido de oportunidade. Ou se precipita ou se atrasa. Por isso, eles dizem primeiro: "Espere! Não é tudo. Há ainda outra faca. Espere! Tem também um brinde". E depois, na altura própria, sim: "Ligue agora! Compre já!".

Recentemente, assisti a um infomercial sobre determinado aparelho que corta cenoura, tomate e pepino em fatias perfeitas, todas iguais.

A senhora que o operava deixava para trás um passado negro de décadas a comer verduras assimétricas e obtinha a felicidade através da salada.

Não sei por que, mas a alegria daquela consumidora encheu-me de uma tristeza muito profunda. Tanto que era, à sua maneira, uma tristeza uau.

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