Na minha crise da meia-idade, resolvi ter aulas diárias de kickbox. O corpo quer fazer-me a desfeita de envelhecer, eu respondo com tortura. Vamos ver quem se fica a rir no fim.
Em princípio, não sou eu nem ele: são os outros praticantes de kickbox da minha academia. Eu estou lá a fazer o que me compete: fingir que sou tão jovem quanto eles. É ridículo, claro, mas é importante não esquecer que o ridículo é uma construção cultural.
O que é ridículo aqui pode ser aceitável na China. Quem sabe se, na China, o fato de eu me dirigir a uma academia num conversível do qual tenho dificuldade em sair sem gemer, para praticar um desporto que o meu corpo deixou de ser capaz de praticar há 20 anos, não é admirável? É possível. Não é provável, mas é possível.
De qualquer modo, percebi rapidamente, e com muito agrado, que as regras do que a gente chama civilização não se aplicam na academia de kickbox.
Toda a gente, independentemente da sua idade, sofre porque o seu corpo, por mais jovem que seja, não está afeiçoado ao esforço que o desporto exige. Antes de começar a parte do treino em que há uma simulação de luta, a carga física é tão intensa que a perspectiva de, mais tarde, ir levar socos na boca do estômago, é encarada com ansiedade otimista.
Vale cometer atos que, fora da academia, seriam inadmissíveis (como socos na boca do estômago). E os praticantes pertencem a uma raça bizarra de gente cuja relação com a dor os leva a ser eufemísticos umas vezes e brutalmente honestos noutras. Os eufemismos têm a ver com a parte da luta.
Uma das primeiras perguntas que uma pessoa faz quando se inscreve numa academia destas é: “Quão violentos são os treinos?”. A resposta dos treinadores é: “Bom, pode acontecer, de vez em quando, levar uns toques”. “Toques” significa socos na boca do estômago que suspendem durante um período de tempo bastante alargado uma capacidade física que eu prezo bastante que se chama: respirar.
A honestidade bruta aparece na parte do treino físico. Muitas vezes, quando estou ensopado em suor, os meus treinadores incentivam-me com a frase “força, campeão; descansas no caixão”.
Para eles, ao que parece, a ideia de que um dia eu estarei morto é a inspiração de que eu preciso para completar a série de 200 flexões. E têm razão. Naquela altura, a morte parece-me uma hipótese bem sedutora.
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