Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira
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Ria por sua conta e risco

No espaço de um mês, Trump e Putin manifestaram alguma inquietação com a gargalhada de Kamala Harris

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A primeira coisa que os ditadores fazem é proibir que o povo se ria deles. Tudo bem, talvez não seja a primeira coisa, mas está entre as primeiras. Isso costuma ser interpretado como uma prova de que o humor tem muito poder, quando é apenas a prova de que os ditadores têm muitas inseguranças. Eu tenho quase dois metros e peso 90 quilos —e tenho medo de aranhas. Isso não é a demonstração do poder das aranhas, coitadas.

Na imagem criada por LP, duas pessoas estão rindo muito de cabeça para trás sentadas em poltronas de cinema ou seria um teatro?! A primeira tem cabelos curtos lisos e veste calça, camiseta, casaco, meias pretas e tênis. Seus lábios estão fechados num sorriso relaxado. A segunda tem cabelos crespos e está de camiseta, saia e tênis. Ri abertamente como quem gargalha e os olhos cerram de prazer. Ela tem as duas mãos próximas do pescoço como quem se segura no riso. Ambas estão com as pernas apoiadas nas poltronas vazias da frente. Ao lado do desenho, no escuro da sala lemos: SEGURO PRA MORRER DE RIR.
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araújo Pereira de 8 de setembro de 2024 - Luiza Pannunzio/Folhapress

Entre o final do século 19 e o início do século 20, vários jornais noticiaram a morte de espectadores que assistiam a espetáculos de vaudeville ou —sobretudo— a filmes. Confrontadas com a novidade do cinema, as vítimas não aguentavam o poder das comédias e riam até à morte. De acordo com esses jornais sensacionalistas, as vítimas eram quase exclusivamente mulheres. Antigamente desmaiava-se mais, tenho verificado. Nos filmes antigos, sempre que uma mulher era confrontada com uma notícia perturbadora, desmaiava, e era preciso abaná-la com um leque. Nos filmes modernos quase não se desmaia —e ainda bem, porque já ninguém anda munido de um leque.

Mesmo tendo em conta a maior sensibilidade das pessoas de antigamente, o mais provável é que as notícias sobre as mulheres que morriam a rir sejam mitos urbanos. Ainda assim, o pânico em torno de mortes provocadas pelo riso fez com que as seguradoras da época lançassem seguros contra o risco de morrer a rir em espetáculos de comédia. (Confesso que não sei quem pedia a proteção, se o espectador ou o dono do cinema).

A ideia de que existe qualquer coisa profundamente ameaçadora no riso é antiga. Quando quem ri é uma mulher, o perigo aumenta. O riso dá prazer, o que agrava a situação: há uma tendência para suspeitar que o que dá prazer é errado e/ou faz mal.

Depois de Trump ter feito considerações acerca do riso de Kamala Harris, agora foi a vez de Putin fazer o mesmo. "Tem um riso tão expressivo e contagioso que isso significa que está tudo bem com ela", disse ele, com ironia. Não creio que seja coincidência. No espaço de um mês, dois homens poderosos manifestaram alguma inquietação com a gargalhada de uma mulher. E não creio que eles estejam preocupados com o risco de ela morrer de riso.

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