Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Ross Douthat
Descrição de chapéu The New York Times

Nostalgia é essencial para qualquer futuro, seja ele de esquerda ou de direita

Por mais que a história esteja sujeita à falsificação, ela ainda é material mais poderoso que temos

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The New York Times

Mark Lilla, professor da Universidade Columbia, crítico liberal da direita e da esquerda contemporâneas, tem um ensaio na última edição do Liberties Journal que analisa a atração e os riscos da nostalgia.

A atração é universal, argumenta ele: como adultos de meia-idade folheando fotos de férias que "nos lembram, ou nos iludem, fazendo-nos pensar que as relações familiares já foram mais simples e felizes do que são hoje", quase todas as sociedades se veem romantizando sua própria origem ou seu passado.

Mas o risco é inerente ao romance: não menos que o futurista utópico, o romântico retrógrado é tentado a arrancar violentamente o presente das juntas, a sacrificar vidas e tesouros no altar de uma "integralidade perdida", uma fantasia do que nunca foi.

Cena do documentário 'O Triunfo da Vontade', de Leni Riefenstahl, propaganda da Alemanha de 1935, que acompanha um gigantesco comício do partido nazista em Nuremberg
Cena do documentário 'O Triunfo da Vontade', de Leni Riefenstahl, propaganda da Alemanha de 1935, que acompanha um gigantesco comício do partido nazista em Nuremberg - Divulgação

Lilla ilustra esse risco com uma longa discussão sobre o papel que a nostalgia e os passados imaginários desempenharam na ascensão, formato e selvageria do nacional-socialismo na Alemanha. A política hitleriana da nostalgia não se limitava a fantasias de pureza teutônica, observa ele; os nazistas também reivindicavam a herança da Grécia, com o próprio Adolf Hitler "traçando paralelo entre a prática espartana de abandonar crianças deficientes" e a "limpeza eugênica em escala industrial" de seu regime.

E esse tipo de invocação, a ligação consciente do mundo antigo com o presente moderno, era em si uma imitação do espírito da Roma da época de Augusto, cujo projeto cultural, personificado acima de tudo por Virgílio, era "redirecionar a nostalgia do passado em direção ao futuro e levantar a perspectiva de saltar sobre o presente para chegar a um mundo utópico por vir".

Nesse sentido, argumenta Lilla, "as ideologias do fascismo moderno são todas herdeiras da ‘Eneida’".

Acho que isso é verdade, mas a natureza de sua verdade sugere um contraponto necessário à crítica de Lilla –ou talvez uma extensão e elaboração de seu argumento, já que duvido que ele descartasse totalmente um papel construtivo para a nostalgia na civilização humana.

Porque a "Eneida" de Virgílio é, afinal, uma das obras artísticas centrais da história ocidental, e a era de Augusto em geral também é lembrada por bom motivo. Assim, a influência de Virgílio e de sua época atravessa o tempo por meio de inúmeros canais: a arte renascentista, a poesia do século 18, a teoria política do início da era moderna, a arquitetura neoclássica e muito mais.

Os fascistas foram herdeiros da Roma augustana não por causa de uma afinidade entre suas visões de mundo, mas porque a Roma augustana tinha muitos supostos herdeiros.

E teve todos esses herdeiros e imitadores porque o fenômeno descrito por Lilla, o redirecionamento da nostalgia da grandeza do passado para uma visão do futuro, é uma parte essencial da construção da civilização humana. Não é que tenhamos a marcha constante do progresso de um lado e, do outro, as pessoas lançando-se ao passado em fantasias de arcádias perdidas como uma espécie de alternativa escapista. A relação é muito mais complexa.

O que pensamos como progresso moral e cultural muitas vezes depende de olhares para trás, redescobertas e recuperações que permitem escapar do beco sem saída do presentismo, das repetições da decadência. Ou, alternativamente, redescobertas nostálgicas são muitas vezes necessárias para humanizar e domar os excessos do progresso, para manter continuidades que de outra forma poderiam ser estilhaçadas por mudanças sociais ou tecnológicas.

A nostalgia de pastoralistas vitorianos como John Ruskin, a quem Lilla se refere, seria um exemplo da segunda categoria –com a arquitetura neogótica e o movimento "artes e ofícios" como forças humanizadoras necessárias em meio à turbulência da nova sociedade industrial.

Para um exemplo da primeira categoria, podemos olhar para o Renascimento italiano, a fundação do Estado de Israel ou a Restauração Meiji no Japão. Ou, do mesmo modo, podemos simplesmente olhar em volta: a república americana, nosso lar tão moderno e liberal, foi ela mesma fundada sobre muitos impulsos retrógrados (em direção à Grécia antiga, em direção à Bíblia hebraica e aos anglo-saxões) que Lilla identifica com o fascismo do século 20.

Foi uma nova ordem para os tempos, mas o que foi a maçonaria, cujos símbolos decoram nossa moeda, se não um exemplo de tradição inventada, não menos que qualquer mito nazista da antiguidade ariana?

A questão é: o que havia de fundamentalmente errado nos nazistas não era que eles se interessassem pela restauração de glórias imaginárias; é que eles eram monstros morais que incluíam o assassinato em massa entre as glórias do passado.

Ou, tomando a formulação de Lilla sobre os nostálgicos "saltando sobre o presente para chegar a um mundo utópico por vir", o problema aí é o utopismo, a crença numa sociedade perfeita que exige necessariamente a eliminação de todos que não se encaixem. Não é a ideia de retroceder na esperança de dar um salto à frente, de tentar encontrar um lugar novo por meio de alguma conexão com a antiguidade.

O que me traz de volta à nossa era. Lilla conclui seu ensaio com uma advertência de que a "nostalgia política" está agora "preenchendo o vácuo deixado pelo abandono de ideologias progressistas como o socialismo e o liberalismo democrático" –com referências implícitas ao populismo ocidental e explícitas ao movimento hindutva da Índia e às ambições civilizacionais de Moscou e Pequim.

Mas podemos voltar e ler um ensaio exemplar de Lilla de nove anos atrás, antes da onda populista, quando ele escrevia sobre o vazio e a ignorância histórica deliberada de um neoliberalismo de influência libertária no final da história, e adquirir uma perspectiva ligeiramente diferente sobre a nossa situação. Aqui está um pouco do que Lilla escreveu então:

"Nunca, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e talvez desde a Revolução Russa, o pensamento político no Ocidente foi tão superficial e sem noção. …

"Tente transmitir o grande drama da vida política e intelectual de 1789 a 1989 aos estudantes de hoje –americanos, europeus e até chineses– e você se sentirá como um poeta cego cantando sobre a Atlântida perdida. O fascismo para eles é o ‘mal radical’, portanto incompreensível; como ele pôde se desenvolver e por que atraiu milhões permanece um mistério. O comunismo, embora tenha sido para ‘muitas coisas boas’, também faz pouco sentido, especialmente a fé que as pessoas depositaram na União Soviética. …

"… nossa era é libertária por padrão: quaisquer ideias, crenças ou sentimentos que silenciaram a demanda por autonomia individual no passado se atrofiaram. …"

"Nosso libertarismo … é extremamente dogmático e, como todo dogma, sanciona a ignorância sobre o mundo e, portanto, cega os adeptos para seus efeitos naquele mundo. Começa com princípios liberais básicos –a santidade do indivíduo, a prioridade da liberdade, desconfiança da autoridade pública, tolerância– e não avança mais. Não tem gosto pela realidade, nem curiosidade sobre como chegamos aqui ou para onde vamos."

Se isto é realmente onde acabamos, então talvez não seja correto dizer que ideais liberais e democráticos foram precipitadamente descartados em nome de uma perigosa nostalgia. Talvez as circunstâncias que Lilla descreveu em 2014 tenham tornado algum tipo de anseio ou busca retrospectiva mais ou menos inevitável –como uma reação natural a uma paisagem onde o progresso parecia ter terminado em tédio, repetição, esterilidade intelectual, democracia liberal como dogma e não como prática, tudo sob a gestão do que Lilla, então, chamou de uma classe de líderes "abstêmios complacentes afastados da história".

Ele faria uma distinção, eu suspeito, entre a insipidez neoliberal que descreveu naquele ensaio e a forma mais robusta de liberalismo democrático que ele postula como alternativa à nostalgia nacionalista atual. Mas talvez a robustez interna do liberalismo democrático dependa, como o tipo de liberal mais conservador há muito afirmou, de uma herança pré-liberal tanto para estabilidade quanto para vigor, e quando essa herança é gasta o liberalismo por si só não basta para sua reconstrução.

Nesse caso, a busca por um passado utilizável, a invenção e reinvenção da tradição, é essencial para qualquer movimento voltado para o futuro, de esquerda ou de direita –porque, por mais que a história esteja sujeita à mitologização e à falsificação, ainda é mais acessível que o futuro desconhecido, ainda é o material cultural mais poderoso que temos.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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