Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

Polarização na Igreja Católica é também culpa das controvérsias do papa Francisco

Zelo reformista do pontífice não agrada conservadores nem emplaca mudanças progressistas concretas

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The New York Times

A Quaresma chegou, e chegou também o décimo aniversário da ascensão do papa Francisco ao trono pontifical. É uma conjunção apropriada, já que estes são dias de provações para seu pontificado.

Há a guerra em duas frentes que Roma trava com relação à doutrina e à liturgia, tentando sufocar os tradicionalistas da igreja que defendem a missa em latim e, ao mesmo tempo, restringindo mais gentilmente os bispos alemães liberais para que não imponham um cisma ao flanco de esquerda do catolicismo.

o papa francisco, homem branco e idoso que usa túnica e um pequeno chapéu também branco, se protege do vento enquanto sai ao ar livre
Papa Francisco deixa a sua audiência geral semanal ao ar livre na praça de São Pedro, no Vaticano - Alberto Pizzoli - 15.mar.2023/AFP

No caso tenebroso do padre e artista jesuíta Marko Rupnik, há o exemplo mais recente de clérigos com bons contatos, acusados de abuso sexual, que parecem estar imunes às regras e reformas que deveriam impor limites à sua ação sacerdotal.

E há também as cifras desanimadoras para a igreja da era de Francisco, como a queda crescente no número de homens estudando para o sacerdócio em todo o mundo, que atingiu o pico no início do pontificado de Francisco e vem diminuindo desde então. Ou o quadro financeiro lamentável, que já se agravou a tal ponto que o Vaticano agora está cobrando aluguéis mais altos dos cardeais para compensar por anos de déficits.

A narrativa de Francisco como grande reformador foi apresentada pela imprensa secular desde o primeiro momento, e a reação ao surgimento de provas em contrário frequentemente não passa de silêncio discreto. Tem sobrado para seus críticos conservadores compilar as listas de clérigos acusados de abusos que receberam tratamento favorável deste pontífice; falar das falhas da reforma financeira e da ausência de qualquer renovação evidente dos fiéis, ou observar que um pontificado que prometeu tornar a igreja menos voltada para dentro, menos autorreferencial, em vez disso produziu uma década de desavenças internas amargas e divisões teológicas crescentes. Tudo isso enquanto o discurso oficial do catolicismo é recebido pelo resto do mundo com indiferença conspícua.

Pelo menos com relação à polarização evidente da igreja os admiradores do papa têm sua narrativa própria: para eles, o problema se resume à resistência dos católicos conservadores, especialmente dos católicos conservadores americanos, que têm bloqueado, obstruído e sabotado este pontificado, desafiando tanto o Espírito Santo quanto a autoridade legítima de Roma. A direita católica teria desencadeado uma guerra civil e a atribuído injustamente ao papa, cujas aparentes falhas de governança e liderança não passariam de uma prova da dificuldade de efetuar reformas verdadeiras e profundas.

Tenho alguns motivos pessoais para discordar dessa narrativa. Fui um dos primeiros a nutrir dúvidas sobre o papa Francisco, temendo mais ou menos o tipo de decadência à qual estamos assistindo, e minhas dúvidas toparam com oposição inicial intensa da parte de muitos de meus colegas católicos conservadores, que relutavam ao extremo em enxergar qualquer divergência entre eles e Roma. Assim, o fato de muitos deles terem desde então acabado em algum tipo de oposição ao pontífice parece ser consequência das maneiras específicas com que Francisco tem colocado sua liberalização em prática, e não uma simples oposição automática a qualquer coisa situada fora da zona de conforto desses conservadores.

Considere um cenário contrário aos fatos em que os primeiros meses do papa teriam transcorrido de forma idêntica —os gestos de inclusão e acolhida, o célebre comentário "quem sou eu para julgar?"—, mas depois disso a abordagem dele tivesse sido focada, estrategicamente traçada para buscar mudanças, mas também para conservar a unidade.

Isso poderia ter implicado, por exemplo, implementar as mudanças defendidas pelos católicos liberais que são mais fáceis de conciliar com a doutrina existente, como relaxar as regras do celibato para os padres ou mesmo autorizar mulheres a ser diáconas, ao mesmo tempo fazendo esforços sérios para tranquilizar os conservadores, mostrando que a igreja não estaria simplesmente abrindo mão de seus compromissos ou dissolvendo seus ensinamentos sobre o sexo e o casamento.

Esse tipo de abordagem ainda teria topado com oposição por parte dos conservadores (minha opinião pessoal é que revogar a regra do celibato seria um erro), e os limites e as garantias ainda teriam decepcionado os liberais que almejassem uma transformação muito maior. Mas as metas teriam sido concretas e alcançáveis, os limites teriam sido claros, e o papa teria tentado desempenhar algo como o papel do pai na parábola do filho pródigo, que corre para receber o filho mais jovem mas também reafirma ao filho mais velho o amor que tem por ele.

Em vez disso, o lance inicial de Francisco envolveu uma controvérsia muito mais emaranhada com a doutrina católica: a questão do novo casamento após um divórcio, em que as próprias palavras de Jesus estavam em questão. Enquanto isso, sua abordagem mais ampla tem sido marcada pela abertura de controvérsias no maior número possível de frentes: às vezes com suas declarações, às vezes com suas nomeações, e por algum tempo com a estratégia bizarra de conduzir diálogos reiterados com um jornalista italiano ateu que não fez anotações, deixando os católicos comuns confusos, sem saber ao certo se o papa havia realmente negado a doutrina do inferno ou se apenas não se incomodava que os leitores do La Repubblica o pensassem.

Francisco tem complementado tudo isso com uma crítica constante aos conservadores, especialmente os tradicionalistas, que ele tacha de rígidos, farisaicos e indiferentes, por serem todos "figuras rígidas em suas batinas pretas" e por usar "renda de vovó". É o equivalente ao pai da parábola voltar-se contra seu filho mais velho e repreendê-lo por ser um sujeito esquisito e quadradão. E quando, previsivelmente, a facção tradicionalista passou a concentrar uma oposição online por vezes paranoica, o papa que pregava a descentralização e a diversidade abraçou a crueldade microgerencial, procurando sufocar as congregações da missa latina com gestos "misericordiosos", como proibir a divulgação de suas missas nos boletins paroquiais.

No entanto, mesmo com tudo isso, o papa não chegou a efetuar grandes mudanças concretas na ala progressista da igreja, tendo em vez disso recuado diversas vezes –adotando posição ambígua sobre a comunhão para os divorciados e recasados, pisando no freio quando parecia que ia autorizar novos experimentos com padres casados, deixando sua congregação para a doutrina da fé declarar a impossibilidade de abençoar os casais homoafetivos que muitos bispos europeus queriam autorizar.

E isso, também previsivelmente, tem criado tanto decepção com as expectativas não atendidas quanto um impulso constante de ir o mais longe possível, chegando à aproximação com o protestantismo liberal que a igreja alemã, em especial, parece desejar, com base na teoria de que Francisco precisa ser forçado a abraçar as reformas que vive contemplando, mas não chegando a realizar de fato.

Assim, visto agora neste seu décimo aniversário, este pontificado não tem enfrentado resistência inevitável apenas devido a seu zelo reformista. Ele tem multiplicado controvérsias e exacerbado divisões desnecessariamente em nome de uma agenda que ainda parece impalpável, e suas escolhas a cada passo têm parecido feitas sob medida para criar o maior distanciamento possível entre as diferentes facções da igreja.

Tradução de Clara Allain

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