Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

A luta de Joseph Ratzinger está apenas começando

Legado pleno de Bento 16 será sentido ao longo de décadas ou mesmo séculos

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The New York Times

O primeiro papa a renunciar foi Celestino 5º, nascido Pietro da Morrone, que estava vivendo a vida de um eremita devoto quando foi nomeado pontífice, em 1294, para romper um impasse que já durava dois anos no Colégio de Cardeais. Ele já tinha mais de 80 anos. Não se sentindo à altura do cargo, renunciou pouco depois, na expectativa de retornar à sua vida monástica. Em vez disso, foi encarcerado por seu sucessor, Bonifácio 8º, pelo receio de que alguma facção rival convertesse Celestino num antipapa.

O ex-pontífice morreu após cerca de um ano no cativeiro. Seu sucessor, um dos mais ambiciosos dos papas medievais, acabou mergulhando num enfrentamento desastroso com o rei da França que terminou com Bonifácio aprisionado temporariamente nas semanas antes de sua morte.

A estranha ultravida do pontificado de Bento 16, que se encerrou com sua morte no sábado (31), aos 95 anos, não foi tão dramática ou tempestuosa. Mas, como a ultravida de Celestino, não foi um exemplo que incentive futuras renúncias papais. Por quase uma década o antigo Joseph Ratzinger exerceu um papel peculiar e mal definido como "papa emérito", nem inteiramente recluso nem formalmente ativo, enquanto seu sucessor, o papa Francisco, procurava desmontar partes importantes de sua obra.

O corpo do papa emérito Bento 16 no interior da Basílica de São Pedro, no Vaticano
O corpo do papa emérito Bento 16 no interior da Basílica de São Pedro, no Vaticano - Tiziana Fabi -2.jan.23/AFP

O ex-papa prometeu viver o resto de sua vida "oculto do mundo" e, presume-se, esperava ver seu legado seguro. Em vez disso, viveu um pós-pontificado feito de gestos ambíguos em resposta a um Vaticano que, graças aos mistérios da providência de Deus, fora entregue a seus adversários de longa data.

A releitura do que escrevi quando Bento anunciou a aposentadoria, em 2013, é uma experiência estranha, porque boa parte da análise foi desmentida alguns anos após a renúncia. Na época, argumentei que Bento, como papa e antes disso chefe doutrinal de João Paulo 2º, trabalhara incansavelmente para impedir que as rupturas que se seguiram ao Concílio Vaticano 2º –a queda brutal no comparecimento de fiéis à missa no mundo ocidental, as guerras em torno de liturgia e ética sexual— dividissem a igreja.

Grande teólogo, membro da geração brilhante que aconselhou os bispos no Vaticano 2º, Bento colocou sua inteligência a serviço da continuidade, reafirmando as crenças fundamentais da igreja, defendendo a piedade tradicional contra revisionistas acadêmicos, argumentando ao longo de toda a vida que o Concílio Vaticano 2º não havia simplesmente sobrescrito a igreja que existira por séculos antes dele.

Essa obra fez dele inspiração intelectual a muitos católicos, em especial os convertidos que buscavam uma síntese da razão e da religião sobrenatural. A influência de seus escritos –desde sua "Introdução ao Cristianismo" até a trilogia sobre a vida de Jesus que escreveu quando era papa— deve ter vida mais longa que a celebridade de João Paulo e de Francisco. Também lhe valeu muitos inimigos, especialmente entre católicos progressistas que enxergavam sua insistência sobre a ortodoxia como punitiva e para os quais a igreja precisava de uma revolução para cumprir os objetivos de Deus no mundo moderno.

Até sua renúncia, porém, sua busca por estabilidade e continuidade pareceu provisoriamente bem-sucedida. Parecia que ele estava entregando a seu sucessor uma verdadeira síntese da igreja (não obstante certas tensões e dificuldades) pré e pós-Vaticano 2º e que seus esforços haviam preservado o catolicismo dos cismas que dividiram outras comunidades cristãs globais (anglicana, metodista) após as revoluções sociais da década de 1960.

Contudo, o que sua renúncia produziu não foi o que Bento esperava. Em lugar de outro conservador, os cardeais reunidos escolheram como seu sucessor um outsider imprevisível. E o pontificado de Francisco em pouco tempo ficou definido por um impulso amplo de liberalização, uma mudança notável de pessoal e políticas e a reabertura de muitos dos debates da era dos anos 1970 que Bento havia tentado resolver.

Essa agenda ainda não conseguiu produzir a igreja que o catolicismo progressista almeja. Muitas vezes Francisco parece ter pressionado por uma mudança em relação a questões controversas, da comunhão para divorciados e recasados à regra do celibato dos sacerdotes, apenas para escolher um rumo mais ambíguo. E, em certos casos, como parte de seu papel estranho pós-aposentadoria, Bento realizou intervenções intelectuais que pareceram funcionar como aviso a seu sucessor para não ir longe demais.

É certo que a era de Francisco reconduziu a igreja a um estado de divisão teológica declarada. As igrejas progressistas do norte da Europa, encabeçadas pelos bispos alemães, fazem pressão por uma revolução –posições liberais em relação a questões sexuais, liderança laica e intercomunhão com protestantes.

A hierarquia mais conservadora nos EUA é vista por aliados de Francisco como perigosamente rebelde, acusada de tolerar um espírito de ruptura à direita. E, após todos os esforços de Bento para reconciliar os tradicionalistas com o Vaticano 2º, criando espaço para a missa em latim na igreja moderna, Francisco reimpôs restrições fortes à sua celebração, empurrando os tradicionalistas de volta ao cisma.

Sob essas pressões, a visão de continuidade e estabilidade que Bento promoveu está sendo desmontada por ambos os lados –à esquerda, pela ideia do Vaticano 2º como uma revolução contínua, um concílio cujo trabalho nunca vai acabar, e à direita, por um misto de pessimismo e paranoia, um distanciamento nada conservador da autoridade papal, algo cujo final é difícil prever.

Parece muito difícil para qualquer admirador de Bento olhar para o que aconteceu após sua renúncia e enxergar uma justificativa para a aposentaria, uma manifestação da vontade do Espírito Santo em ação.

Ao mesmo tempo, seu legado pleno será sentido ao longo de décadas ou mesmo séculos. Tudo que podemos dizer sobre seus anos estranhos como papa emérito é que o modo como o papa Bento 16 procurou governar a igreja, conservar sua coesão institucional e teológica, foi contestado e parcialmente revertido. Mas Joseph Ratzinger, o estudioso, teólogo e escritor, Joseph Ratzinger, o defensor de uma certa ideia da cristianismo católico –sua luta está apenas começando.

Tradução de Clara Allain

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