Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras.

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Ruy Castro
Descrição de chapéu

A volta de quem não foi

Se Millôr voltar, irei de barba, cajado e túnica para as ruas

O escritor e cartunista Millôr Fernandes, morto em 2012
O escritor e cartunista Millôr Fernandes, morto em 2012 - Ricardo Moraes - 13.nov.16/Folhapress

Há tempos escrevi aqui sobre um apartamento, em Ipanema, de certo intelectual morto em 2012 e que, na iminência de ser ocupado por um novo morador, começou a acusar fenômenos estranhos —como se o antigo proprietário ainda estivesse por ali, inconformado por ter morrido e surpreso por constatar que, ao contrário do que sempre acreditara em vida, parecia existir, sim, um “outro mundo”.

Que fenômenos? Eram objetos deixados pelos operários num lugar e que reapareciam em outro, vasos sanitários que davam descarga por conta própria e lâmpadas que se acendiam e se apagavam seguindo uma coreografia. E os suspiros, gemidos e pigarros, que se podiam identificar como sendo do falecido morador. Era como se o homem estivesse tentando se comunicar com o nosso miserável mundo —ele que, por 70 anos, escrevendo e desenhando em jornais, revistas e livros, enriquecera este mundo com seu gênio e rigor implacáveis.

 Pois aconteceu que um jovem americano alugou o apartamento. Sabendo quem morara ali, quis conhecer seus textos e cartuns. Isso pode ter aplacado a situação, mas não por muito tempo. Logo os livros começaram a aparecer ao contrário na estante e os quadros a amanhecer de cabeça para baixo. O americaninho estava disposto a aguentar até que, há poucas semanas, uma parte do teto desabou. O rapaz pegou o boné —largou tudo e voltou para os EUA.

Foi preciso fazer nova obra no apartamento. E terá sido coincidência que, no dia 27 de março último, sexto aniversário da morte de nosso amigo, o chão do apartamento tenha afundado? Não há dúvida —ele quer voltar e, pelas amostras, deve ter muito a dizer.

Até hoje omiti seu nome, mas fui finalmente autorizado a revelá-lo: Millôr Fernandes. Não acredito nessas coisas, mas, se Millôr voltar, você pode me aguardar, de barba, cajado e túnica, pelas ruas do Rio.

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