Samuel Pessôa

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

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Samuel Pessôa

O imbróglio do Carf

Conselho precisaria ter independência do fisco; quem julga não deveria ser quem audita

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Na semana passada, expirou a medida provisória que devolvia à Receita Federal o voto de qualidade no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). Volta a valer a lei de abril de 2020, do governo Bolsonaro, que extinguiu o voto de qualidade para o fisco. O tema será tratado por meio de um projeto de lei que o governo enviou ao Congresso.

O Carf é um órgão da Fazenda federal que julga causas tributárias na esfera administrativa. É paritário, com representantes da Fazenda e dos contribuintes, as empresas, indicados pelas confederações patronais, CNA, CNI e CNC.

Antes de abril de 2020, se houvesse empate, o presidente do colegiado, um representante da Receita Federal, tinha o voto de qualidade. Em geral, a Receita ganhava a pendência na esfera administrativa. O contribuinte poderia acessar o Judiciário. Após a lei de abril de 2020, o empate significa vitória do contribuinte. E, nesse caso, o fisco não pode recorrer ao Judiciário. Claramente, os incentivos ficaram desequilibrados contra a Receita Federal.

Fachada externa do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). (Foto: André Corrêa/Agência Senado.) - André Corrêa/Senado Federal

E, de fato, o ministro Fernando Haddad está correto quando lembra que essa situação é única. Em nenhum lugar na esfera administrativa há composição paritária. No entanto, penso que o retorno à situação que vigorava anteriormente à lei de abril de 2020 torna os incentivos desequilibrados no outro sentido.

O motivo é que os impostos federais indiretos pagos pelas empresas no Brasil —PIS/Cofins, IPI— têm uma complexidade única, e, portanto, todo o processo é único. Para os impostos de renda pagos pelas empresas, apesar de a complexidade não ser o problema maior, há enorme arbitrariedade na forma como a Receita interpreta a lei.

Por aqui a empresa apura seu próprio imposto. A regra de apuração tem inúmeras ambiguidades. A Receita, por sua vez, não estabelece com toda a clareza como a regra deve ser exatamente aplicada. E, pela lei, o fisco tem cinco anos para homologar ou não o tributo autodeclarado. Se a Receita discorda da empresa, a suposição é que houve erro grave, que gera um auto de infração e multa de 75%.

Portanto, se é verdade que a situação após a lei de 2020 —a Receita perder o voto de qualidade— é uma jabuticaba, todo o processo de conformidade com o pagamento dos impostos que incidem sobre as empresas no Brasil é também uma jabuticaba.

Por exemplo: uma empresa considera que aquisição de material de segurança —botas e capacetes— representa gasto essencial para a produção. Na apuração da base de cálculo do PIS/Cofins, a empresa desconta esse gasto. A Receita considera que material de segurança não é essencial para a produção e autua a empresa. Afinal, material de segurança é ou não essencial para a produção?

Em sua coluna mais recente (folha.com/hul45vgf), Marcos Lisboa elencou diversos outros exemplos, como casos que envolvem itens da remuneração de trabalhadores cuja lei determina isenção de contribuição previdenciária, do que discordam os auditores. Há uma latitude tamanha dos auditores em interpretar a lei que muitas vezes é quase como se eles fossem os próprios legisladores.

Adicionalmente, não há homogeneidade na decisão do Carf, e a Fazenda não estabelece publicamente parâmetros para barrar o planejamento tributário, principalmente em lucros de subsidiárias no exterior, no lucro doméstico, no ágio e nos diversos mecanismos de remuneração dos trabalhadores. É comum que o planejamento tributário, baseando-se na legislação (ou em uma possível interpretação da legislação), seja tratado como fraude com multa de 150%!

Ou seja, o problema é que a regra estabelece que qualquer divergência entre o contribuinte e um auditor da Receita gera multa de 75% e um auto de infração ou multa de 150% quando o fisco interpreta o planejamento tributário como uma fraude. O natural é que haja alguma instância anterior ao Carf de solução de divergências interpretativas. Deveriam ir para o Carf os casos claros de fraude e complexas questões de planejamento tributário com vistas à formação da jurisprudência.

Pode-se argumentar que não haveria problemas, pois o Carf é uma esfera administrativa e sempre há o recurso ao Judiciário. Mas, se o empate no Carf significa vitória da Receita na esfera administrativa, como reestabelecia a MP que perdeu validade na semana passada, o acesso ao Judiciário torna-se particularmente oneroso para a empresa: é necessário uma fiança bancária ou um depósito.

A solução estrutural do problema envolve dois passos. Primeiro, é necessário que avancemos muito na agenda de simplificação para que nos tornemos um país um pouco mais normal em matéria tributária e, portanto, no qual a observância da regra não tenha uma infinidade de zonas cinzentas. O ministro Haddad tem se empenhado na aprovação da reforma tributária dos impostos indiretos. A coluna torce pelo sucesso do ministro. Trata-se de agenda de Estado.

Segundo, que o Carf tenha independência da Receita. Quem julga não deveria ser quem audita. O Carf deveria ser um órgão do Estado com servidores públicos concursados para a função de julgar administrativamente a conformidade tributária com status análogo, por exemplo, ao do Banco Central.

Até lá, parece que a melhor saída é o voto de qualidade retornar ao Carf, mas com a regra de que, se houver empate, o contribuinte poderá acessar a esfera judicial sem a necessidade de fiança bancária ou de depósito judicial e de pagamento de multa.

Ajudaria muito, também, que a Fazenda desse publicidade à sua interpretação dos limites do planejamento tributário. Aí, sim, a empresa poderia, por sua conta e risco, ter outro entendimento e ir ao Judiciário. Nesse caso, caberiam multa e demais gravames.

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