Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Cinquenta tons de racismo

Romance de Paulo Scott lança luz sobre um dos grandes nós do país

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O recém-lançado romance “Marrom e Amarelo” (Alfaguara), de Paulo Scott, é provavelmente a obra de ficção que, em toda a história, mais se aproxima de traduzir a complexidade do racismo brasileiro.

Mais do que um feito artístico, trata-se de um feito de linguagem —o que é uma redundância, claro.

Escritor rodado, Scott está no auge da forma ao iluminar uma realidade que, entre silêncio e gritaria, resiste às palavras.

O escritor Paulo Scott
O escritor Paulo Scott - Bruno Veiga - 10.fev.2015/Folhapress

É curioso que um livro tão rigoroso (em mais de uma acepção) surja no momento em que estamos mais grosseirões, mais viciados em cores chapadas, tanto à direita quanto à esquerda.

Nesse sentido, “Marrom e Amarelo” se contrapõe ao (imperdível, diga-se) “Bacurau” por recusar, numa luta corporal que o leitor acompanha tenso, a tentação da alegoria simplista e redentora.

O narrador da história, Federico, tem pinta de branco como a mãe, mas seu pai e seu irmão são negros.

Destituído do R (de raça) que tornaria “normal” o seu nome, está condenado ao deslocamento.

Segundo o velho mito racista do branqueamento, até hoje bem vivo no senso comum, aquele porto-alegrense do Partenon, bairro de classe média mais para baixa cercado de vilas (favelas), é o triunfo 
de um ideal. Deveria ficar feliz.

Longe disso, é um atormentado. Construiu uma bem-sucedida carreira na militância antirracista para tentar lidar com o poço sem fundo de raiva onde está sempre prestes a cair.

O racismo estrutural brasileiro tem efeitos nítidos e violentos na hierarquia social, mas isso não significa que seja simples. Mexendo em vespeiro, o romance recusa desde o título o conforto cognitivo do preto e branco.

No plano epidérmico das escolhas linguísticas que isso implica estão as cores literais. O livro começa como uma distopia meio cômica, com Federico se juntando à comissão governamental encarregada de criar um software que elimine fraudes no sistema de cotas das universidades.

A certa altura, alguém ataca a ideia de régua cromática recitando o catálogo das tintas Suvinil e observando que Marshmallow, Areia Maranhense, Estrada de Terra, Tijolo e Chocolate em Pó “poderiam 
ser cores de pele humana”.

O leque de tons da miscigenação brasileira já ancorou visões mais ou menos utópicas do mulatismo como nossa originalidade possível, mas a ideia anda malvista como mascaradora de conflitos. A própria palavra “mulato” está sob ataque.

No entanto, como aplicar à nossa realidade meândrica o binarismo importado do movimento negro americano, reação ao racismo legal do “one-drop” (basta ter um remoto antepassado negro para ser negro) que vicejou em vários estados dos EUA no século passado? O que fazer?

“Marrom e Amarelo” traz mais perguntas que respostas, mas sugere que esquecer comissões federais fajutas pode ser um começo. Seu eixo se desloca então de Brasília para Porto Alegre, aonde uma crise familiar grave chama Federico de volta.

Para entender os eventos que tanto tempo depois vieram explodir nessa crise, e nos quais a raiva sem fundo do narrador tem papel crucial, Scott desdobra em contraponto ao presente, em blocos intercalados, uma história violenta ocorrida em 1984.

Uma sacada estrutural sutil —a narrativa de hoje roda para a frente, e a do flashback, para trás— convida o leitor a mergulhar cada vez mais no passado a fim de lidar com o presente e ter, quem sabe, futuro. Uma nação aleijada pela herança escravocrata não deveria ignorar essa mensagem.

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