Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Sem fôlego

Abraço de afogado do presidente ameaça o país em travessia crucial

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Outro dia me lembrei de uma memória terna, ainda que cômica: como tantos pais de primeira viagem, eu me via, volta e meia, vigiando meu filho adormecido em seu berço, com medo de que ele parasse de respirar.

Um clássico. Momentos de pânico (o peito dele está imóvel há tempo demais!) seguidos de alívio (voltou a se mexer, ufa!) e dúvidas torturantes (isso foi mesmo um movimento ou apenas uma ilusão, ah, estes meus olhos que insistem em piscar...).

O respirante leitor sabe bem: dizer que fôlego é vida é mais do que uma simples metonímia ou metáfora. O fôlego é parente do fole (do latim “follis”), aquele da sanfona. Um saco de ar capaz de esvaziar e encher de novo. Um pulmão.

Depois de tanto ler sobre um vírus que ataca os pulmões, só de pensar que respiro, acredito estar respirando mal.

Talvez minha condição de ex-fumante agrave a sensação, mas respirar parece ser uma daquelas coisas que nosso corpo faz melhor quando a cabeça não se intromete muito. Como sexo.

O presidente Jair Bolsonaro conversa com apoiadores ao sair do Palácio da Alvorada
O presidente Jair Bolsonaro conversa com apoiadores ao sair do Palácio da Alvorada - Pedro Ladeira - 06.abr.2020/Folhapress

Existe uma velha expressão portuguesa, “fôlego vivo”, que significa pessoa. “Não havia um só fôlego vivo nas ruas” (Houaiss). Em nosso país gentil e maneiro, “fôlego vivo” acabou ganhando também o sentido de escravo, pessoa escravizada.

“O coronel Emerenciano Borges tem para mais de mil fôlegos vivos”, dizia-se. Todos respirando, claro —pelo menos ainda. E se morressem, Emerenciano Borges comprava outros.

Isso é passado, mas nem de longe passado o suficiente. Como estará o fôlego —a capacidade, a resistência— do país deixado de herança pelo coronel em meio à travessia mais difícil imposta à humanidade desde a Segunda Guerra Mundial?

A verdade é que, mal a prova começou, o Brasil já está resfolegante em seu berço esplêndido. Pudera: tanta distração e tolice, tanta falta de juízo.

Fizemos a coisa mais estúpida que um país poderia fazer neste momento: somamos uma crise política grave a uma crise de saúde pública mais grave ainda. Desta vez foi no capricho.

Enquanto uma peste das mais escrotas espalha dor, morte e pobreza, um presidente com sintomas de sociopatia só vê na crise planetária seu próprio problema político-eleitoral.

Esvaziado de poder pelos setores do governo que neste momento priorizam salvar vidas, ainda assim não admite ser decorativo. Tem mil litros de ódio no tanque cheio.

Farão falta o tempo e a energia que estamos desperdiçando há semanas com esse angu. Esta seria a hora de manter a calma, dar braçadas regulares. Poupar os foles à espera do tranco.

Com subnotificação e tudo, o Brasil preenche diversos requisitos socioeconômicos, sanitários e educacionais para se tornar oficialmente um dos maiores playgrounds de coronavírus do globo.

E quando o país se viu lançado n’água como todo mundo, o presidente e o bolsão bolsolavista à sua volta, em vez de lhe aliviar o lastro, o redobrou.

O fôlego do Brasil para essa travessia já não seria dos melhores em condições normais, mas Bolsonaro pode estar lhe dando um abraço de afogado em momento crucial da história.

Não requer uma sagacidade extraordinária perceber que os Jogos Olímpicos do Japão foram substituídos por outra competição, também de alcance planetário, só que muito mais importante.

Com regras que vão sendo reescritas no caminho, o mundo joga hoje o que será o século 21, as posições que cada país ocupará no tabuleiro geopolítico daqui para a frente. O vareio que estamos
tomando é de tirar o fôlego.

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