Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Pandemia de verdade

Novo coronavírus tem alta taxa de letalidade entre mentirosos

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A mentira, que comemorou ontem o seu dia, não é bem um fato do reino das palavras, mas pertence ao domínio da linguagem. Mais precisamente, ao domínio das relações entre a linguagem, o plano simbólico, e aquilo a que a linguagem se refere, o plano real.

Não faltam complicações filosóficas nas relações comerciais e diplomáticas entre o mundo da coisa sem nome e o mundo do nome da coisa (nem a existência de dois mundos é pacífica, mas isso é outra história).

Com graus variados de engenho e ênfase, espíritos argutos apontam há séculos que, mais do que refletir o real, a linguagem lhe dá forma e corpo. Muito justo.

No entanto, o poder da representação fica longe de ser ditatorial. Se você chegar da rua dizendo que faz lá fora um lindo dia de sol, mas estiver ensopado e a janela aberta revelar uma tempestade, será chamado de mentiroso.

Qualquer criança sabe que mentira é mentira, verdade é verdade. O que não significa dizer que a questão seja simples. Muito marmanjo acredita, por exemplo, na mentira redonda de que a Terra é plana.

O terraplanismo propõe uma representação que está em desacordo com a coisa, uma mentira de almanaque. Ou, como prefere Schopenhauer, um dos espíritos argutos mencionados ali atrás, um "erro".

Como é possível que alguém creia em tal coisa? Uma resposta é a que Adolf Hitler deixou no livro "Minha Luta", ao dizer que as massas "são mais facilmente vitimadas por uma mentira grande do que por uma mentira pequena". Que tal uma com o tamanho do planeta?

Para nosso azar, o terraplanismo não é um fenômeno isolado. Pelo contrário, chegou a virar metáfora de todo um gênero de relações com o mundo baseadas em achismo, mistificação, paranoia, conspiracionismo, picaretagem. Mentira, pois é.

Se a cascata é tão velha quanto a humanidade, os primeiros anos deste século viram se alastrar pelo mundo uma pandemia de falsidade na esteira do atordoamento provocado pela explosão de bilhões de vozes nas redes digitais.

O problema inclui as chamadas fake news, mas vai além delas. Com o "fim do monopólio da informação", como os terraplanistas de campos diversos passaram a se referir ao conhecimento produzido por ciência, imprensa e outras instâncias historicamente testadas, a representação aloprou.

Sonhou que poderia prescindir do teste da verdade, afirmando o dia de sol em pleno temporal. O terraplanismo sanitário, que tira recomendações de trás da orelha ou de pontos mais recônditos da anatomia, é o exemplo mais recente dessa tendência.

Contudo, há indícios de que o jeito terraplanista de usar a mentira como arma política, marca do surto de populismo de direita que assolou o mundo nos últimos anos, tenha encontrado no novo coronavírus um inimigo mortal.

Uma coisa é dizer que o nazismo era de esquerda, uma das patranhas de Jair Bolsonaro que a Folha selecionou ontem no inesgotável repertório do presidente. Outra é chamar a Covid-19 de gripezinha.

Quando o que está em jogo é nada menos que a vida, tanto a sua própria quanto a daqueles que ama, tudo indica que o ser humano tem menos tolerância com quem afirma o contrário do que de fato é.

Uma prova disso é que até Bolsonaro, o maior símbolo mundial do terraplanismo sanitário, foi obrigado a encenar um recuo contrafeito em seu pronunciamento de terça-feira (31).

O tom vagamente moderado é mais uma de suas mentiras, claro. Mas agora elas já não saem tão barato.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto teve quatro parágrafos indevidamente embaralhados pela edição. O texto foi corrigido.
 

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