Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Estupro culposo, palavras dolosas

Expressão funciona como uma paródia sucinta da misoginia brasileira

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Estupro culposo: quando não há intenção de condenar o estuprador.” Não sei se a frase tem autor definido ou se deve ser classificada naquilo que se chama de sabedoria coletiva, mas é uma pequena joia.

Trata-se da melhor e mais concisa entre as manifestações indignadas que circulam pelas redes sociais desde que o site The Intercept expôs na terça (3) os detalhes de uma vergonha nacional.

A repulsa ao julgamento em que o empresário André de Camargo Aranha foi absolvido pela Justiça catarinense da acusação de estuprar Mariana Ferrer tem tudo para se tornar um marco na luta inglória para transformar o Brasil num país menos escroto.

O vídeo do julgamento revela Mariana sendo submetida a um estupro moral coletivo (aquilo não tem outro nome, e foi doloso) pelos homens engravatados que a cercam, cada um em seu quadrado virtual, até começar a chorar e implorar respeito.

Audiência do caso de Mariana Ferrer
Audiência do caso de Mariana Ferrer - Reprodução

A cena é forte em si, mas também por sua representatividade. O que Mariana passou na 3ª Vara Criminal de Florianópolis, diante de um advogado truculento e de um juiz aparentemente omisso, é o que passam incontáveis mulheres brasileiras que procuram o Estado como vítimas e acabam no papel de acusadas.

Diante do ritual de humilhação, motivo de vergonha para todos os brasileiros do sexo masculino, a figura juridicamente inexistente do “estupro culposo” provocou uma confusão inicial, antes de se revelar esclarecedora.

Correu a versão de que teria sido invocada pelo promotor. Na verdade, o que este alegou foi que o acusado não tivera a intenção de estuprar. A expressão foi criada pelo próprio Intercept para resumir o caso.

Colou porque faz uma paródia sucinta da misoginia estrutural brasileira. Se tivesse sido usado no julgamento, “estupro culposo” seria parente da “legítima defesa da honra” que absolveu Doca Street do assassinato de Ângela Diniz —como, em boa hora, tem lembrado ao país o brilhante podcast “Praia dos Ossos”.

É por isso que a frase do primeiro parágrafo é potente. Ao escancarar a sordidez por baixo da fórmula burocrático-pedante (“quando não há intenção de condenar o estuprador”), lembra os achados que o americano Ambrose Bierce reuniu em seu “The Devil’s Dictionary” (O Dicionário do Diabo).

Essa pequena obra-prima do humor foi lançada em 1911. Veterano da Guerra Civil, Bierce (1842-1914?) era um jornalista influente e um ficcionista de talento. Mistura de homem de letras e de ação, tinha 71 anos quando decidiu cobrir a quente a Revolução Mexicana e desapareceu sem deixar traço.

Intitulado “The Cynic’s Word Book” (O Glossário do Cínico) em sua primeira edição incompleta, “O Dicionário do Diabo” é uma coletânea das tiradas mordazes que seu autor tinha publicado de forma avulsa ao longo dos anos em jornais e revistas.

Em seus melhores verbetes, o livro concentra crítica de costumes e sátira política em definições cortantes: “Egoísta: pessoa de mau gosto, mais interessada em si mesma do que em mim”; “Cleptomaníaco: ladrão rico”; “Trabalho: um dos processos pelo qual A acumula riquezas para B”.

Uma das definições de Bierce é especialmente relevante no caso Mari Ferrer: “Advogado: especialista em contornar as leis”.

Como as outras, trata-se de uma formulação que contorna a verdade superficial (dicionários sérios dizem algo bem diferente sobre advogados) para revelar uma verdade profunda. Exatamente o que faz a frase que abre esta coluna.

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