Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Presidentes do pau oco

De 30 em 30 anos, o Brasil elege um moralizador fajuto e quebra a cara

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A cada dia mais brasileiros entendem que Jair Bolsonaro é um presidente do pau oco. Bom motivo para falar de uma joia da fraseologia brasileira.

“Santo do pau oco”, clássico do como-dizia-minha-avó, é uma daquelas expressões cheias de alma que vão ficando na história do idioma, cada vez menos faladas pelas novas gerações.

Nada a fazer, é do jogo. A língua sempre seguiu e continuará a seguir para onde bem entender. Mas cultivar a memória das palavras tem vantagens, como a de refletir sobre um jeito culturalmente enraizado de expor a hipocrisia.

Diz o Houaiss que o santo do pau oco é o “indivíduo sonso, fingido”. Muito bem, mas a expressão tem conotações que vão além da dissimulação simples. Designa também o falso puritano militante, que acusa os outros enquanto na moita faz pior.

É uma expressão que comporta nuances, flexões. “Santinha do pau oco” sempre fez muito sucesso por óbvias razões de machismo, com seu moralismo sexual. Quando está no gênero masculino, o falso santo costuma ser ladrão mesmo.

Acredita-se que, na origem, o santo do pau oco fosse um contrabandista. É um fato que museus de arte sacra estão cheios de imagens de madeira das quais o miolo foi retirado. Luís da Câmara Cascudo é um dos estudiosos que acreditam vir daí a expressão.

“Durante os séculos 18 e 19”, escreve ele, “o contrabando de ouro em pó, pedras preciosas e moedas falsas utilizou no Brasil [...] o interior das imagens de madeira, de grande vulto, levadas e trazidas de Portugal com valioso recheio. Muitas fortunas tiveram esses fundamentos”.

Há controvérsia. Em seu “Vocabulário Pernambucano”, o pesquisador Pereira da Costa sustenta que santo do pau oco é só o nome popular de são Vilibaldo, retratado de pé dentro de um vão num grosso tronco de árvore. Perfeito, mas onde fica a hipocrisia nisso?

Mais interessante é haver em Portugal uma expressão antiga, “santo de pau carunchoso”, de sentido idêntico. A madeira bichada bastaria para justificar o dito popular (o caruncho deixa o pau carcomido, oco), sem a necessidade do rebuscado recurso ao contrabando. Claro que este também pode ter aplicado àquele uma nova camada de sentido.

De uma forma ou de outra, estamos em nosso terceiro presidente do pau oco em 60 anos. Separados por uma intrigante equidistância de três décadas, Jânio, Collor e Bolsonaro denunciam uma fragilidade do caráter nacional. De 30 em 30 anos, aproximadamente, elegemos um presidente do pau oco.

Além de evidentes —embora distintos— distúrbios psíquicos, os três personagens têm em comum o notável uso político que fizeram de uma mentira, o discurso moralista anticorrupção que enverniza o santo.

Aproveitaram-se assim de uma crença nacional que é pura falsa malandragem, também chamada de burrice: a de que “só um maluco pra dar jeito nisso aí”.

Isso não quer dizer que os três presidentes do pau oco sejam iguais. Nota-se um claro agravamento do quadro entre Jânio e Bolsonaro, não só em prontuário e virulência como na qualidade do disfarce.

É espantoso que tenha enganado tanta gente o santo bolsonarista, de madeira podre com carunchos expostos, pintura rachada e aqueles compartimentos ilícitos à vista de todos.

Diante de imagem tão fajuta, não duvido que nossos avós, que acreditaram no doido da vassoura, fossem mais espertos agora, percebendo a tempo e em número suficiente que ali estava um santo do pau oco de marca maior. Precisamos melhorar em 2050.

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