Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

A 'bananalidade' do mal

Cada um por si, a maioria dos bolsonaristas não teria coragem de matar

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A expressão “bananalidade do mal” (atenção para a casca de banana) andou circulando por aí nos últimos tempos, mas até onde pude apurar fui o primeiro a usá-la. Fiz isso num tuíte de 4 de outubro de 2018, quando Bolsonaro ainda era só um candidato —o mal de sua eleição já se mostrava inescapável, mas não estava consumado.

“O Brasil bolsonarista atualizou Hannah Arendt: criou a bananalidade do mal”, escrevi. Não cito isso para reivindicar a autoria de um trocadilho meio besta —quem sabe até inadequado, com seu jeito cômico, para dar conta do período de trevas em que o país mergulharia.

jair bolsonaro com faixa presidencial é erguido por multidão
Pré-candidato, Jair Bolsonaro é recepcionado por militantes no aeroporto internacional Afonso Pena, em Curitiba - Danilo Verpa - 28.mar.2018/Folhapress

O que me interessa é demonstrar que já estavam claras na campanha eleitoral –“como a fruta dentro da casca”, na fórmula machadiana— as inclinações moralmente deformadas e friamente assassinas de uma seita política chamada bolsonarismo.

O estarrecedor escândalo da Prevent Senior, que a CPI está desvendando, é apenas o amadurecimento dessa bananosa. Na exaltação estridente da tortura e do extermínio de adversários, entre outros aspectos, desde o início estava codificado em linguagem compreensível a qualquer criança o chamado à desumanidade.

O trocadilho pode ser besta, mas tem fruta dentro dessa casca. A filósofa alemã Hannah Arendt lançou a noção de “banalidade do mal” em seu livro “Eichmann em Jerusalém” (Companhia das Letras). O tema desse ensaio-reportagem é o julgamento a que Israel submeteu em 1961 um ex-funcionário nazista sequestrado por seu serviço secreto em Buenos Aires.

A banalidade do mal —que nossa república bananeira transforma em bananalidade porque, né...— virou no mercado de ideias uma expressão de sucesso, quase pop. Merecidamente, aliás. É fundamental para entender como um Estado criminoso contamina a sociedade em que se instala.

Adolf Eichmann era um Johann Niemand (joão-ninguém em alemão), sujeito comum e sem transcendência, um burocrata provavelmente incapaz de matar um passarinho —que dirá um ser humano— com as próprias mãos.

No entanto, como responsável pela logística de transporte dos campos de concentração e sob as ordens de Himmler, contribuiu diretamente para a morte de milhões de pessoas. Sua defesa alegou que ele só cumpria ordens. Foi condenado à morte mesmo assim.

A tarefa de passar o Brasil a limpo, que mal começou, terá de levar em conta em algum momento o que Arendt chama de “inadequação do sistema legal dominante e dos conceitos jurídicos em uso para lidar com os fatos de massacres administrativos organizados pelo aparelho do Estado”.

As imperfeições desse paralelo são bem evidentes. Por um lado, os brasileiros que morreram de bolsonarismo se contarão no máximo às centenas de milhares —não aos milhões.

Por outro lado, Eichmann tinha muito mais motivos —ligados à segurança da carreira e até da vida— para abraçar o mal. Já foi demonstrado em diversas ocasiões que o Terceiro Reich inspira a extrema direita brasileira, mas seus arremedos verde-amarelos são toscos e farsescos.

A bananalidade do mal é uma rede que envolve militares reaças, jornalistas de aluguel, médicos desprovidos de senso ético, líderes religiosos argentários, artistas fracassados, agentes públicos venais, empresários inescrupulosos e ressentidos em geral.

Trata-se de tipos bem manjados —quem sabe eternos— da comédia humana. Estão todos em Balzac, sem tirar nem pôr. Cada um por si, a imensa maioria nunca teria coragem de matar ninguém.

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