Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Patetas patéticos

Entre o trágico e o ridículo, um desfile para os livros de história

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Não existe nem sombra de redundância no título desta coluna. Patético é uma coisa e pateta é outra, aliás muito diferente –eis o que nos ensina a história das palavras. Mas vai explicar isso ao povo.

Quando o editorial da Folha chama de “parada patética” o desfile de veículos militares que Jair Bolsonaro ganhou de presente das “suas” Forças Armadas, usa a palavra em seu sentido hoje comum: “que suscita constrangimento ou pena”.

Termo nobre de origem grega, primo da paixão, da simpatia e da patologia, o patético atual se especializou. É quase sempre um vizinho mais metido a besta do ridículo, do qual se diferencia por induzir um riso menos rasgado, mais doloroso, mas riso ainda assim.

É desse modo que acaba por se aproximar do pateta, palavra plebeia de prováveis raízes espanholas que alguns estudiosos ligam a pata, pé de bicho, e outros a pato, no sentido metafórico de otário. De uma forma ou outra, um idiota, atrapalhado, incapaz.

Corta para o tanque golpista da Marinha tentando intimidar o Congresso e enchendo Brasília de fumaça de óleo diesel, numa versão mais escura e fedorenta do “pum do palhaço” imortalizado pela ex-ministra Regina Duarte. Patético em muitos níveis, pois é.

A semelhança entre as duas palavras é mera coincidência, mas me parece legítimo especular sobre uma influência de pateta, termo popular, sobre patético, vocábulo erudito, no uso contemporâneo.

Firmemente plantada na cultura de massa como nome do personagem Goofy, da Disney, e do grupo cômico americano The Three Stooges (conhecido em Portugal como Os Três Estarolas), a palavra pateta pode ter contribuído para esvaziar o patético dos últimos vestígios de gravidade que trazia do grego.

Não era pouca gravidade. “Pathetikós” era aquilo que tinha ou provocava “páthos”, emoção, sofrimento. No vocabulário estético, estava ligado à tragédia e nomeava o que conseguia mexer com os sentimentos do público. O patético era o comovente, o que dava arrepios.

Até hoje a palavra carrega esse peso, pelo menos em estado de dicionário. Para o Houaiss, é o que produz “um sentimento de piedade (...), tristeza, terror ou tragédia”.

Faz tempo, porém, que o patético guarda muito mais relação com aqueles sentimentos que costumam ser agrupados na expressão “vergonha alheia” e, mais recentemente, no anglicismo “cringe”.

Em seu “Dicionário de Termos Literários”, de 1974, o crítico Massaud Moisés anotou o “sentido algo pejorativo” da palavra, que “por vezes, assinala o exagero ou a facilidade no incitamento da comoção, beirando o melodrama”.

Bingo: o patético moderno se deslocou da tragédia para a farsa. Ainda é aquilo que inspira um forte sentimento, mas não o sentimento que tinha a intenção de inspirar e sim o constrangimento pelo fracasso da tentativa.

Buscando inspirar terror ou tristeza, o patético inspira humor. Tentando produzir compaixão, produz outro tipo de pena –dó do pateta que expõe desse modo suas intenções, junto com sua incompetência para realizá-las.

Como se vê, não poderia ter sido mais feliz a escolha do editorialista para qualificar o desfile militar de 10 de agosto de 2021, que tem lugar de desonra garantido nos livros de história do futuro.

Enquanto a gente ri, porém, convém não esquecer que o patético nasceu na tragédia e a ela adoraria voltar. Se vai conseguir ou não, depende de quem são os verdadeiros patetas nessa história.

Erramos: o texto foi alterado

​Por falha de edição, versão anterior foi publicada com título errado, o que prejudicava a compreensão da coluna. O enunciado foi corrigido.

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