Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Trata-se de dar um trato na língua

Escreve bem quem escreve claro, não quem tenta emperiquitar o verbo

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"Os livros da coleção tratam-se de obras-primas da literatura." Pode ser, mas quando formula desse jeito seu veredito empolgado o crítico cai em descrédito como juiz de trabalhos que envolvam linguagem.

Usada de forma incorreta, como na frase acima, a locução "trata-se de" é um dos casos mais comuns de hipercorreção no português brasileiro de hoje. Ao tratar dela, pago uma dívida antiga da coluna.

Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a palavra hipercorreção não se refere ao que está muito certo. Damos esse nome à escolha linguística do falante que, ansioso por acertar –mas sem saber como–, recorre àquilo que parece mais rebuscado, mais difícil, menos popular. E erra.

Reinauguração do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo - Eduardo Knapp - 12.jul.2021/Folhapress

Esse tipo de erro é especialmente constrangedor porque representa uma traição à gramática intuitiva, familiar, "natural", sem chegar a merecer as graças da gramática normativa a que aspira. Fica no meio do caminho.

Convém deixar claro que a palavra erro, aqui, não significa delito, pecado ou deficiência cognitiva, mas simplesmente desvio da norma culta.

Nas palavras do linguista Marcos Bagno em sua "Gramática de Bolso do Português Brasileiro" (Parábola), "é considerado erro tudo aquilo que não pertence às variedades urbanas de prestígio".

Vale notar que Bagno, expoente da sociolinguística brasileira, costuma ser citado – em vão, como se vê – por quem reage a textos como o desta coluna com variações da seguinte bronca: "Se você estudasse mais, saberia que erro não existe!".

Estudar mais é sempre bom. No referido livro, Bagno dedica um capítulo inteiro ao fenômeno da hipercorreção e suas manifestações mais frequentes, que chama de "erros a corrigir".

Segundo ele, a hipercorreção, que é filha da insegurança linguística, aparece "com muito mais força nas classes médias baixas" e em grupos socialmente discriminados.

Bagno não diz, mas digo eu, que o fenômeno parece estar em alta acentuada no Brasil, país violentamente estratificado e de educação precária, onde a insegurança linguística é mato.

Nunca "possuímos" tantas coisas que até outro dia costumávamos ter: dúvidas, resfriados, filhos, anos. Hoje raramente estamos em algum lugar –mesmo perdidos, é mais provável que "nos encontremos" lá.

Valeria investigar como todo esse entulho vocabular se relaciona com a crescente –e desoladora– valorização de breguices juridiquentas como "outrossim" em redações de vestibular.

No caso específico de "trata-se de", dois tipos de uso equivocado andam na moda –a frase lá de cima faz uma combinação deles. Sendo uma locução impessoal, ela deve estar sempre no singular e não tem sujeito.

Não dizemos "tratam-se de usos incorretos", mas "trata-se de usos incorretos". E mergulha fundo na hipercorreção quem usa a locução para substituir o verbo ser numa frase como "o filme trata-se de uma comédia" em vez de "o filme é uma comédia".

A boa notícia sobre a hipercorreção é que esse tipo de erro, por mais enrolado que seja em suas raízes psicossociais, é sempre fácil de corrigir do ponto de vista da gramática.

Basta dar preferência às formulações mais simples e "naturais", ou seja, próximas da oralidade. Aquilo é. Eu tenho. Você está. Escreve e fala bem quem se expressa de forma clara e fluente, não quem tenta emperiquitar o verbo.

Trata-se de uma lei universal: quer dar um trato na língua, chame-a de você e não de Vossa Senhoria.

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