Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu machismo

O machista e o sexista vão à guerra

Quando o campo cultural está conflagrado, a precisão vocabular fica arisca

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Precisão vocabular —a escolha da palavra exata, não de um sinônimo aproximado— é mais de meio caminho andado para quem quer se expressar bem. Isso vale para a fala e para a escrita, mas nesta, sem a desculpa do improviso, a exigência é maior.

Em nosso país bacharelesco, a precisão costuma ser confundida com preciosismo, com "vocabulário rico". Nada mais falso. É possível ser cirúrgico manejando um vocabulário de mil palavras e lambão com um de dez mil.

Não há receita de bolo. De simples a precisão vocabular não tem nada, mas quem disse que seria fácil? Mora no cruzamento de infinitas variáveis ligadas tanto ao contexto quanto ao repertório cultural compartilhado por falante e ouvinte, escritor e leitor.

Homem aparece gravando o vídeo, como se fosse uma selfie, à noite
O deputado estadual Arthur do Val, o Mamãe Falei, em trecho do vídeo que gravou na fronteira entre Ucrânia e Eslováquia - Reprodução Youtube

A ênfase recai no adjetivo "compartilhado". Isso significa que, quando o campo cultural está conflagrado, encontrar a sintonia fina da precisão pode se aproximar do impossível.

Um caso recente que rendeu quebra-pau (em sentido figurado e saudável, nada a ver com a cerimônia do Oscar) nos bastidores da Folha é ilustrativo das cascas de banana no caminho da precisão.

Tudo começou quando o colega Antonio Prata lançou a questão: por que o jornal —como a imprensa em geral— preferiu chamar de sexista, em vez de machista, a ode nojenta do deputado Mamãe Falei à predação sexual de refugiadas de guerra?

Machismo, afinal, é uma palavra mais estabelecida na língua, familiar para mais gente, e nomeia um dos pilares de nossa tradição cultural latino-americana. Qual o sentido de substituí-la por um anglicismo que só recentemente vem pegando de verdade por aqui?

Consta que "sexism" foi um neologismo cunhado em 1965 pela professora universitária americana Pauline Leet, numa analogia explícita com racismo.

Outro argumento: além de serem palavras mais conhecidas, machismo e machista levam sobre sexismo e sexista uma vantagem que devemos valorizar na busca da precisão: seu sentido é mais específico, menos genérico.

De fato, o machismo pode ser visto como uma das modalidades do sexismo, que em tese abrange qualquer discriminação com base em gênero ou sexo —embora tenha nascido para designar machismo mesmo, de longe a forma principal que o sexismo assume no mundo, com exceção da mitológica tribo das amazonas.

Será que no fim do dia (cof) a ascensão fulgurante de "sexismo" no Brasil é sobre (cof-cof) nossa anglofilia roxa e nada mais?

Vamos com calma. Embora o fascínio brasileiro pelo que nos chega do inglês seja sem dúvida parte da explicação, convém levar em conta alguns argumentos que vão em sentido contrário aos anteriores.

Quanto Leet criou o termo "sexism", já circulava na língua americana —desde os anos 1940— a palavra "machismo", assim mesmo, com grafia importada do espanhol. Por que ela a preteriu?

Provavelmente porque o sentido daquele espanholismo era diferente: orgulho masculino, virilidade, valentia. Tudo ridículo e cafona, não se discute. Mas se a ideia era denunciar uma ação contra as mulheres, uma negação de seus direitos, um crime, a palavra era difusa demais. Não servia.

Também por aqui machismo tem a acepção de "qualidade, ação ou modos de macho" ao lado da de "comportamento que tende a negar à mulher a extensão de prerrogativas ou direitos do homem" (Houaiss). Essa imprecisão não parece alheia ao sucesso de "sexismo" entre nós.

Vai que chamassem o Mamãe Falei de machista e ele tomasse como elogio.

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