Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Nem tudo o que redunda é vício

Não há linguagem sem reiteração, mas o que dá vida também pode matar

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Toda linguagem é na maior parte redundância, repetição, reiteração, repisar de terreno batido. A comunicação humana seria inviável se não fosse assim.

Não é à toa que os velhos bordões humorísticos de rádio e TV —e os novos bordões humorísticos da internet, também conhecidos como memes— fizeram e fazem tanto sucesso. Eles nos dão o prazer de reencontrar o que já sabemos de cor.

Da mesma forma, ditados e frases feitas nos consolam da angústia quando alguma coisa foge da ordem. Certas palavrinhas clichezentas parecem ter o poder de nos devolver a terreno familiar.

Foto mostra diversos dados de madeira com letras diferentes nas faces
blickpixel/Pixabay

No entanto, desde cedo nos ensinam a fugir da redundância e zombar daquilo que "sobe pra cima" ou aconteceu "há dois anos atrás". Por quê?

É claro que certos pleonasmos são mesmo deselegantes. Contudo, a valorizada concordância gramatical é redundante também. Por que indicar com uma flexão verbal (vamos) um plural que já está indicado pelo sujeito (nós)?

Em defesa da redundância, é possível ir além e afirmar que sem ela a linguagem seria um conjunto enigmático de grunhidos, rabiscos, ruído puro. É na dimensão dos sentidos mais batidos que a linguagem se funda. A redundância é sua mãe.

Pode-se até dizer, com alguma (mas não muita) licença poética, que é pura redundância chamar uma cadeira de "cadeira", palavra da língua portuguesa que nomeia aquele objeto de quatro pés —e provido de encosto, senão vira banco— concebido para acomodar um ser humano sentado.

Já ouvimos incontáveis vezes a cadeira ser chamada de cadeira, tantas que a arbitrariedade desse signo (como sabemos, não há na palavra em si nada que remeta ao objeto, trata-se de um pacto social) se perdeu faz tempo, afogada em tautologia: cadeira é cadeira.

Quando chamamos a cadeira assim, não podíamos estar mais distantes da ideia de originalidade, é evidente —e daí? Parece haver apenas vantagens na troca da novidade pelo conforto morno do pertencimento a algo maior.

A redundância aspira a dissolver o eu do falante num sistema linguístico que já existia quando ele nasceu e que continuará a existir após a sua morte. O lugar-comum lhe canta uma irresistível canção de ninar. A redundância é uma forma de gozo.

Porém, ai, porém... Se a redundância é a mãe da linguagem, sua tendência a se tornar uma supermãe do tipo controlador, que tenta abarcar com seu amor sufocante todas as dimensões da vida, requer cuidado.

Em certo momento, o lugar-comum que cantarola ao lado do berço começa a ganhar ares sombrios, quem sabe sinistros. Mais um pouco e o que se vê é um clichê visguento e vicioso, pastor de manadas, inimigo do pensamento, assassino da inteligência. Expressão automática. Burrice. Tédio.

Na linguagem, como na vida familiar, existe a hora crítica de sair de casa e se aventurar no mundo. A redundância que lhe permitiu existir estará sempre presente, claro, pois é algo que a constitui.

No entanto, o valor real do ato de linguagem passará a ser medido pelas margens em que ele conseguir, correndo algum risco, fugir do já sabido e arranhar o novo —um dado desconhecido e revelador, um sutil rearranjo de peças, um olhar original que reorganiza a realidade e muda percepções arraigadas, um arrepio.

Em linhas gerais, à mensagem escrita que traz revelações no plano do conteúdo damos o nome de notícia; se a novidade que ela apresenta tem mais a ver com a forma, chamamos de literatura.

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