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O gênero da linguagem

Línguas mudam lentamente por aceitação popular; não é papel do Estado interferir

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Mural com textos do escritor Jorge Amado no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo (SP) - Alessandro Shinoda/Folhapress

A chamada guerra cultural em torno de temas como aborto, drogas e sexualidade intensifica a polarização política entre ditos progressistas e conservadores. O embate surgiu e é mais acirrado nos EUA, mas o Brasil incorpora suas pautas.

Uma delas é a linguagem neutra, que propõe mudanças na língua para incluir pessoas não binárias, que não se identificam com o gênero feminino ou masculino —e segundo estudo publicado na Nature, constituem cerca de 1,2% da população no Brasil e de 2% no mundo.

Pelas alterações propostas, o pronome "todos" vira "todes", adjetivos como "bonito" e "bonita" viram "bonite" ou "bonitx", e, além de "ele" e "ela", acrescenta-se o "elu".

No último dia 11, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional uma lei de Rondônia que proíbe o uso dessa linguagem em instituições de ensino.

A Corte entendeu, corretamente, que a lei estadual viola competências da União. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, federal, estipula regras sobre currículos, conteúdos programáticos, metodologia de ensino e atividade docente.

Além de seguir essa norma técnica, o STF acertou ao impedir que o governo interfira de modo censório no uso da língua. Não é papel do Estado definir como as pessoas se comunicam no dia a dia, e tal restrição vale tanto para interditos quanto para a promoção de novos estilos de linguagem.

A língua, como toda manifestação cultural, não é imutável. Rupturas de valores ao longo do tempo e contatos entre os povos geram novidades cuja aceitação popular é paulatina. Apenas a partir do uso generalizado, palavras são incorporadas aos dicionários.

Em relação à sintaxe (a concordância entre as palavras), mudanças são raras, pois afetam a estrutura da língua —caso da linguagem neutra. Na frase "todas as vítimas morreram", a troca para "todes" exige a criação do artigo "es". Já o termo "vítima" termina em "a", mas não se refere apenas a pessoas do gênero feminino; deveria ou não ser trocado por "vítimes"?

Diferentes identidades sexuais e de gênero merecem respeito, e pessoas que as manifestam têm direitos que devem ser garantidos como para qualquer cidadão. A diversidade é um valor democrático.

Mas pode-se questionar se, num país em que quase metade dos jovens tem dificuldade para interpretar textos, mexer profundamente na língua seria estratégia de fato eficaz contra o preconceito.

editoriais@grupofolha.com

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