Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu réveillon

Acorda que lá vem o Réveillon!

Tempo, tempo: ao contrário de Caetano, entro em desacordo contigo

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"Réveillon" é um daqueles estrangeirismos que, por mais aclimatado que esteja à nossa língua, resiste a ter sua grafia adaptada. Nesse sentido lembra show, shopping e marketing, contrastando com futebol, xampu, abajur e tantas outras palavras aportuguesadas.

"Reveião"? Sim, já faz alguns anos que é possível encontrar essa forma irreverente circulando por aí, mas a verdade é que ela nunca perdeu —e talvez não perca jamais– o jeitão de piada. O que provavelmente explica o fato de nenhum dicionário ter lhe dado confiança.

Essa espécie de sotaque gráfico eterno mantido por determinados estrangeirismos tem semelhança com o sotaque propriamente dito que certas pessoas de origem estrangeira parecem fazer questão de cultivar.

Mão segura espumante
A palavra 'réveillon' nasceu no francês do século 16 com sentido um pouco diferente: uma refeição feita tarde da noite para manter os comensais acordados - Bruno Santos/Folhapress

Correndo o risco de alongar a digressão, vale citar aqui o exemplo de Clarice Lispector, que chegou da Ucrânia ainda bebê e arranhou seus erres até morrer –embora, aos 21 anos, tentando apressar seu processo de naturalização, tenha escrito uma carta ao ditador Getúlio Vargas na qual se declarava uma pessoa "que não conhece uma só palavra de russo mas que pensa, fala, escreve e age em português".

Voltando à palavra preferida dos brasileiros para nomear a festa de virada do ano, registre-se que o substantivo nasceu no francês do século 16 com sentido um pouco diferente: "réveillon" era apenas uma pequena refeição feita tarde da noite por dois ou mais comensais, ceia destinada a mantê-los acordados.

Tratava-se de um substantivo derivado do verbo "réveiller", isto é, acordar (alguém), arrancar do sono, reanimar. A ceia assim batizada podia ser servida em qualquer noite do ano que, por alguma razão, se precisasse ou se quisesse esticar. A ligação com uma data específica só surgiria tempos depois.

E a primeira data não foi sequer a de 31, mas a de 24 de dezembro. Até hoje, em sua língua de nascimento, "réveillon" se aplica indistintamente às ceias –e por extensão às celebrações como um todo– de Natal e de Ano-Novo. Esta última acepção, a única que pegou em português, surgiria apenas em fins do século 19.

Embora esteja em todas as bocas nesta época do ano, pronunciado "reveion" sem dificuldade alguma até por crianças pequenas, esse galicismo parece destinado a ser um abacaxi eterno na hora da escrita. E o diabo do acento, onde fica? Grave ou agudo?

É provável que jamais perca atualidade aquela pergunta de Adriana Partimpim, mais conhecida como Calcanhotto, regravando uma divertida lista de dúvidas infantis de autoria do Kid Abelha: "Por que é que o tempo passa? (…) Como é que se escreve Réveillon?"

Imagino alguns votos bastante sensatos de Ano-Novo: que você possa reduzir seu tempo de exposição a telas, que a IA não lhe roube muito mercado de trabalho, que aquele palhaço maligno de extrema direita não consiga se eleger de novo nos EUA...

Tem mais: que a maioria da humanidade julgue relevante separar verdade de mentira e entenda que transformar aliados em inimigos mortais de graça, com base em qualquer critério que seja, é muita burrice.

Percebo então que esses votos são não apenas atualíssimos, feitos sob medida para o ano que vem dobrando a esquina, mas virtualmente incompreensíveis algum tempo atrás. Tempo, tempo, tempo, tempo: ao contrário de Caetano, entro em desacordo contigo, mas vamos em frente. Feliz 2024!

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