Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Para o Chico, em seus 80 anos

Colunista confessa dívida de ter aprendido a escrever com Construção

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Era uma fita cassete, que os mais jovens talvez só conheçam do bonito filme de Wim Wenders, "Dias Perfeitos". Naquele tempo, nada tinha de retrô o que rolava no toca-fita do carro do meu pai, um Volkswagen TL azul-bebê. Estávamos em 1971, eu tinha 9 anos e tocava "Construção".

Quando eu digo que tocava "Construção", o verbo no pretérito imperfeito não dá a ideia exata do que se passava ali. Tocava "Construção" sem parar, e o disco de amadurecimento e definição de rumos artísticos que Chico Buarque concebeu entre o exílio na Itália e o Brasil se inscrevia em sulcos fundos no cérebro de um menino.

Chico Buarque, sentado no banquinho, canta e toca violão; ele usa calça e camisa jeans
Chico Buarque em ensaio no Porto (Portugal) - @chicobuarque/Instagram

Hora de reconhecer uma dívida que nunca pagarei: aprendi a escrever, em primeiro lugar, com o artista brasileiro que neste 19 de junho de 2024 chega aos 80 anos. A gente acaba tendo muitos mestres na vida, mas acho seguro dizer que, para mim, tudo começou com "Construção".

Como? Vai saber. O modo buarquiano de manejar as palavras –cerebral mas sonoro e cheio de alma, o máximo rigor aliado à máxima expressividade, ouvido e acabamento perfeitos– me acendeu um interruptor na cabeça.

Da faixa-título, joia de poesia linguístico-social, já se disse tudo. E tem "Valsinha", "Cotidiano", "Cordão". Até hoje "Olha Maria" me arrasta a outra dimensão, "nos braços do mar" –o primeiro vislumbre do amor, da renúncia ao amor e da morte, tudo ao mesmo tempo, pelo menos de que eu guarde lembrança. Repito: eu tinha 9 anos.

Depois vem tudo o que o Chico gravou ou dele gravaram. Minha geração cresceu com a trilha sonora do cara. Num egotrípico "filme da vida", a música já estaria escolhida.

A primeira "uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão" coincidindo com a de "Feijoada Completa" no LP da samambaia. O primeiro coração partido embalado por "João e Maria" no rádio.

Capa de LP de Chico Buarque
Reprodução/Reprodução

Tive uma namorada que falava do homem de olhos verdes de modo a deixar claro que, para fugir com o sujeito, era só ele entrar naquele segundo pela porta. "Deixa a morena com a gente!"

Incomodava um pouco, mas era bom –o desafio criava um clima propício. Aí vinham o "jeito manso que é só seu", o lado de baixo do Equador e tal. O quente romantismo buarquiano acompanhou minha entrada na vida adulta.

O desgosto profundo de vivermos sob uma ditadura veio no pacote, junto com a indignação social do aedo que, falso romântico, concebia o delírio do linchamento de um tirano por "nego humilhado, morto-vivo e flagelado" vindo "de tudo que é lado".

A ditadura militar podia estar ferida, mas estava viva em 1979, quando "Não Sonho Mais" fez sucesso na voz de Elba Ramalho. Levaria uma mão cheia de anos para morrer. O troço, além de tudo, exigia coragem.

Anos mais tarde, apaixonado pelo rock da minha geração, passei a não mais atender quando o Chico ligava. Nossa amizade esfriou. Claro que caí em mim e voltei pedindo perdão. No lendário show de 1994 no Canecão eu soube, enxugando os olhos, que era perdoado.

Me vejo de volta no TL do meu pai, ouvindo "Construção". Proparoxítonas sólidas, num desenho ilógico de tão lógico, a voz pequena apontava um caminho de expressão que eu não sabia existir; de certa forma, me inventava.

E se você acha que o colunista fugiu do seu tema porque este texto nada tem a ver com palavras, com linguagem, o que eu posso dizer? Ouça uns dias de Chico Buarque –mas ouça mesmo, com corpo, cabeça, alma– e depois a gente conversa.

Feliz aniversário, querido Chico, e o meu melhor obrigado.

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