Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Troço, treco e outras geringonças

A gramática as classifica como palavras-ônibus, pela quantidade de trens que carregam

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Quando uma coisa vira um negócio assim, como direi, difícil de nomear, mesmo porque a precisão acabaria soando imprecisa de um ponto de vista expressivo, nossa língua tem à disposição o troço, o treco e –se você for mineiro, goiano ou um trem parecido– o trem.

São palavras quase sempre intercambiáveis, e se repararmos bem exibem incríveis semelhanças fonéticas, com o mesmo encontro consonantal "tr" se impondo logo de cara. Reservam suas diferenças apenas para o rabo.

Isso não quer dizer que sejam parentes etimológicos, embora a hipótese de um elo perdido entre o treco e o trem –enterradíssimo em alguma cova do passado– talvez não devesse ser desprezada.

Certo mesmo é que a língua brasileira, tanto no sentido de idioma quanto no de músculo, se diverte vibrando contra os dentes quando resolve trocar o trabalho pela troça.

A gramática classifica troço, treco e (nesse caso) trem como palavras-ônibus, aquelas que transportam tantos sentidos que acabam por ter contornos semânticos meio difusos. Aqui estamos no terreno da informalidade, claro. Não tente fazer isso no Enem.

Trem transportando vários trecos no interior de São Paulo - Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress

A informalidade não nos impede de procurar alguma ordem na bagunça. Vamos encontrá-la no Houaiss, que no verbete "trem" divide seus empregos como palavra-ônibus em seis casos.

No lugar de algo concreto: "Comprou seus trens na farmácia". De algo abstrato ou imaginário: "O trem complicou entre o casal". De processo, situação: "Foi um trem difícil de resolver".

Também de um mal físico: "Teve um trem durante a noite". De uma notícia, novidade: "Temos um trem para te contar". E finalmente como expletivo, ou seja, elemento estilístico usado por puro realce.

Embora, por alguma razão difícil de entender, os mais disseminados troço e treco não mereçam do nosso melhor dicionário o mesmo zelo classificatório, vale dizer que em todas essas instâncias a correspondência semântica entre as três palavras é praticamente perfeita.

Se esse trem todo mundo sabe de onde veio, restando apenas a tarefa árdua de explicar como aquela gigantesca minhoca de metal virou metáfora de tanta coisa, treco e troço exigem algumas palavras de elucidação.

O árabe "tarayk", coisa de pouco valor, é a provável fonte de treco, embora os estudiosos não tenham total certeza. O fato comprovado é que, ainda no século 18, de "tarayk" se fez tareco, o mesmo que cacareco, tralha. O termo popular surgido dois séculos mais tarde seria uma redução deste.

Troço também brotou, este sem dúvida alguma, de uma palavra mais respeitável do vernáculo. Curiosamente, esta só precisou mudar de timbre para ganhar novos sentidos.

Com a pronúncia "trôço", troço é uma vetusta palavra portuguesa que fomos buscar no espanhol "trozo". Hoje pouco usada no Brasil, deu origem ao verbo destroçar e ao substantivo destroço.

A ideia original por trás desses troços todos é, como se vê, a de pedaço, fragmento. Parte de um treco partido, sabe? De um trem quebrado.

E se todos esses trecos, troços e trens fazem o(a) leitor(a) se horrorizar com os rumos da linguagem vulgar, talvez sirva de consolo pensar na cômica palavra geringonça.

Esta tem parentesco etimológico com o jargão e a gíria e, antes de ganhar o sentido mais comum de trem malfeito, treco desengonçado, tinha o significado de linguagem grosseira, calão.

Eu sei, é possível que isso não queira dizer absolutamente nada. Mas que é um troço bem legal, é.

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