Sílvia Corrêa

É jornalista e médica veterinária, com mestrado e residência pela Universidade de São Paulo.

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Sílvia Corrêa

Tratados como filho, cães viram alvo de síndrome humana

Hospitais veterinários colecionam casos de doenças inventadas por tutores para que pet receba atenção médica

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Já há alguns anos a cena se repete no hospital veterinário. Ela chega já de madrugada, com um de seus muitos cães bem enroladinho em um cobertor e relata que o animal está tossindo muito ou teve um desmaio, uma convulsão, vários episódios de diarreia. As queixas variam.

O paciente, então, é examinado e acaba internado porque ela insiste. Mesmo ele estando bem ao exame físico, ela alega ter medo de levar o cão para casa e vê-lo passar mal novamente.

Durante as horas seguintes, sob observação dos médicos, o animal mantém parâmetros absolutamente normais. Mesmo assim, é submetido a exames complementares de todos os tipos —de sangue, urina, imagem. Ela faz questão de fazer tudo, mas nenhum exame encontra nada.

O paciente tem alta, mas ela volta —horas ou dias depois— dizendo que ele está passando mal. Desenrola o cobertor, e lá está o animal, abanando o rabo. Os exames são repetidos. Especialistas são chamados a opinar. Mas ninguém acha nada.

Cachorro coberto por uma manta ocre, com o focinho e os olhos aparecendo
Com o vínculo cada vez mais estreito com animais, os cachorros recebem cuidado mas também são alvo de nossos desequilíbrios - Adobe Stock

Aconteceu de novo esta semana. E não acontece só neste hospital que atendo. Há um caso já clássico em uma outra unidade de saúde de uma senhora que insiste que a cachorrinha está desidratada e só se acalma se o animal recebe soro.

No começo, os médicos avaliavam a paciente e explicavam que não havia desidratação. Mas a senhora voltava horas depois. E voltava. E voltava. E voltava.

Até que um desses médicos decidiu fazer 5 ml de soro subcutâneo, um volume que não hidrata nem um hamster. Desde então, a cliente vai embora aliviada e relata nos dias seguintes o quanto o animal melhorou. A cada mês, ela reaparece.

Trazidos para dentro de casa e criados como filhos, cães e gatos são hoje parte de muitas famílias. Graças a esse vínculo cada vez mais estreito, eles recebem cuidado, atenção, dedicação quase incondicional. Mas, na esteira dessa mesma proximidade emocional, acabam alvo de nossos desequilíbrios mais profundos.

Damos a eles o que há de melhor e de pior em nós, como classicamente fazemos com as pessoas que amamos.

O distúrbio pelo qual humanos inventam doenças para si e para os familiares não é novo para a psiquiatria. Tem até nome: Síndrome de Munchausen.

A síndrome foi descrita pela primeira vez em 1951. Esses pacientes, de forma compulsiva e contínua, provocam ou simulam manifestações clínicas em si mesmos sem que haja nenhuma vantagem óbvia de fazer isso, a não ser receber cuidados médicos.

O termo “Munchausen” é associado com Barão de Münchhausen (1720-1797), cujas viagens eram recheadas de histórias surreais.

Por volta de 1977, os médicos passaram a usar o termo “síndrome de Munchausen por procuração” para descrever a criança cuja mãe inventa manifestações clínicas, altera exames laboratoriais ou, nos casos mais graves, causa lesões ao filho para sustentar um histórico de doença. Em 1998 a síndrome foi associada a episódios envolvendo cães e gatos.

Em humanos, há uma estimativa de que 1 em cada 200 mil jovens com menos de 16 anos esteja no alvo da doença —com relatos de falsos problemas de saúde ou com lesões causadas silenciosamente pelos pais. O índice salta para 2,8 por 100 mil quando o universo considera apenas os menores de 1 ano.

Em animais a frequência com que isso ocorre ainda é um mistério, mas em conversas de bar todo médico-veterinário tem uma história para contar. Se o número de casos for inversamente proporcional à capacidade de defesa da vítima, como sugerem as taxas humanas, talvez estejamos diante de um cenário importante.

Já há alguns anos, para tentar estimar esse universo, pesquisadores da Universidade de Edimburgo enviaram questionários a 1.000 médicos-veterinários do Reino Unidos perguntando sobre os casos que eles haviam atendido e que poderiam se classificados como “episódios de lesões não-acidentais produzidas em animais”. Dos 448 relatados, 9 atendiam aos critérios da síndrome de Munchausen por procuração —2% dos casos.

O estudo até sugere que os eventos não sejam tão raros, mas o dado ainda está longe de apontar uma incidência real, porque não toma como base o total de atendimentos médicos de determinado período nem a população de animais das cidades estudadas.

Em publicações mais recentes, pesquisadores do mesmo Reino Unido tentaram listar indícios que possam ajudar o médico-veterinário a identificar esses casos.

A iniciativa é ótima e de extrema utilidade prática, mas, de fato, essa não é uma discussão que não deve ficar restrita aos médicos-veterinários. São episódios que falam mais sobre nós, os humanos, do que exatamente sobre a saúde dos bichos.

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