Silvio Almeida

Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

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Ordem e caos

Disseminar o caos é possível graças à participação das instituições e seus agentes

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A tentativa do Partido Liberal (PL) de censurar artistas no Lollapalooza tem significados que vão além da notória aversão do presidente da República e seus apoiadores à democracia. Na verdade, este caso nos leva a importantes conclusões sobre como um governo paradoxal e errático como o de Bolsonaro consegue se sustentar.

Para quem não se lembra, o partido do presidente ingressou no TSE com um pedido para que o tribunal determinasse à organização do Lollapalooza a proibição de manifestações políticas, com o propósito de supostamente impedir a antecipação de campanha eleitoral.

Público do Lollapalooza segura bandeira com o rosto do ex-presidente Lula - Rubens Cavallari - 28.mar.22/Folhapress

É evidente que a medida objetivava censurar artistas do festival críticos ao governo. Ao receber o pedido, o ministro Raul Araújo Filho, sem ouvir seu pares, concedeu a liminar determinando a censura e fixou multa de 50 mil reais em caso de descumprimento.

Diante da enorme repercussão do caso, mais tarde, o próprio PL solicitou a desistência da ação.

Não vou aqui repetir aquilo que outros juristas antes de mim já disseram acerca da decisão que conseguiu ser, ao mesmo tempo, inconstitucional, ilegal e inexequível.

O que é relevante aqui é ver como o caos cultivado pelo governo Bolsonaro só prospera diante de certa conivência do sistema político e jurídico. Por mais aviltante que possa ter sido o pedido feito ao TSE, é importante lembrar que foi feito por um partido político e que foi acolhido por um ministro do Tribunal. Ou seja: Bolsonaro existe na fragilidade das instituições que ao invés de contê-lo, muitas vezes lhe dão de comer.

Se parece um paradoxo que o presidente que se diz "antissistema" dependa do sistema para sobreviver, é porque de fato é. Como nos lembra a antropóloga Leticia Cesarino —uma das mais argutas analistas da atual conjuntura—, Bolsonaro governa de modo paradoxal, em uma atitude antissistema que se apoia no sistema ou posando de "chefe", ao mesmo tempo em que não assume a responsabilidade por absolutamente nada, nem pelo que diz.

Ele não governa, não administra e não toma providências de sua atribuição porque se isso fizesse simplesmente não seria Bolsonaro. As únicas invariantes deste governo são o caos, a desorientação cognitiva e a produção permanente de crise.

Outro conceito importante, também trazido por Letícia Cesarino, e que muito nos diz sobre o governo Bolsonaro, é hedging narrativo. Hedging é um termo do mercado financeiro e que se refere a uma estratégia de gestão de risco em que as possíveis perdas em um certo investimento são compensadas com outro investimento, só que na direção contrária.

É ganhar na alta e na baixa, simultaneamente. Como a aposta foi feita a partir de cenários diametralmente opostos, o investidor nunca perde totalmente. Por isso, o presidente não assume a responsabilidade pelas ações de seu governo, pois na hora certa será preciso culpar alguém em caso de derrota e estar pronto para receber as glórias, em caso de vitória. Como ele varia entre ficar parado e agir irracionalmente, ninguém saberá muito bem o que ele fez para ganhar e eis que ai surge o "mito".

E este é o caso da liminar concedida pelo Ministro do TSE. O partido do presidente entra com a ação e ele nada diz. Quando vem a repercussão negativa ele aparece "indignado" e o partido retira a ação.

De qualquer forma, isso já serviu para que ele renove as acusações que faz dia sim e outro também contra a justiça eleitoral e reforce a falsa equivalência entre a censura que seu partido queria impor a artistas e as decisões do Supremo Tribunal Federal nos inquéritos que apuram a divulgação de notícias falsas e a prática de atos antidemocráticos por parte de alguns de seus apoiadores.

E isto não quer dizer que o presidente seja um estrategista ou um gênio da política. Ele nem precisaria porque, em primeiro lugar, há uma institucionalidade incapaz de lhe oferecer limites e uma sociedade constituída a partir da financeirização, em que tudo é imprevisibilidade, incerteza, narrativa e aposta. Neste cassino em que o mundo se converteu, o Brasil não tem um presidente, mas sim um "day trader".

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