Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

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Suzana Herculano-Houzel

Sim, sr. Presidente, todo mundo morre, mas não nos leve junto

Tive revelação semelhante aos 7 anos: 'ir à escola para que, se todo mundo morre no final?'

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Senhor Presidente, soube pelos jornais que o senhor teve, justo agora em pleno exercício do cargo mais importante do país, a revelação de que todo mundo morre no final. Sei bem o que é ter que lidar com esse peso, senhor Presidente.

Não sou terapeuta e não o conheço, mas lido com esta questão todos os dias em meu trabalho como cientista. Então talvez eu possa ajudar um pouquinho, se, por sorte, hoje for um dia em que o senhor passe os olhos pelos jornais.

Além disso, tive esta mesma revelação aos sete anos de idade, também em momento inoportuno, quando a casa passava pela faxina semanal. Eu já devia estar a caminho da escola, mas minha mãe se apiedou das lágrimas que me rolavam pelas bochechas, ao som dos meus protestos de "ir à escola para que, se todo mundo morre no final?", ajoelhou-se ao meu lado e pegou na minha mão.

Bolsonaro com as duas mãos no rosto, puxa a face para baixo
O presidente Jair Bolsonaro (PL), durante evento de comemoração do Dia Nacional do Forró e Aniversário de Luiz Gonzaga, no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira/Folhapress

Peço desculpas se a distância me impede de fazer o mesmo, senhor Presidente, mas lhe digo o que ela me explicou: que são as oportunidades de alegria da vida que fazem o esforço valer a pena.

Eu, hoje neurocientista, acrescento que são exatamente nossos esforços para lidar com a vida que nos dão prazer —desde que tenhamos aquele bocadinho de poder sobre nossas próprias vidas, o que nos dá sensação de controle, e desde que, ao menos de vez em quando, nossos esforços sejam recompensados, ainda que um pouquinho só por vez.

Isso tudo, senhor Presidente, obra dos circuitos de recompensa e motivação no cérebro de vertebrados, como nós —o senhor sabe, quem tem espinha dorsal— que nos premiam, sabe-se lá por que, quando nossas ações têm resultados que nos agradam.

Graças a este sistema, senhor Presidente, seguimos em frente propositalmente ignorantes também daquela projeção dos astrofísicos de que o sol nos engolirá a todos em uns 8 bilhões de anos (o senhor sabia dessa?).

É tanta dopamina que esse sistema nos despeja entre as orelhas que vivemos escolhendo viver mais um dia, ainda que racionalmente a empreitada seja, em última análise, inútil, como o senhor descobriu recentemente.

Vivemos de pequeno prazer em pequeno prazer, gratos pela possibilidade de mais um dia de esforços torcendo pelo melhor, ou oblívios aos pequenos milagres da biologia que nos mantêm vivos, mas vivos ainda assim.

Agora, claro que de vez em quando o cérebro tem um surto de pura racionalidade, como o senhor teve, e decide que todo esse esforço não é para ele, mas ainda tem um restinho de energia suficiente para se motivar a dar um fim a isso tudo e deixar mais energia para os outros. Esse esforço para um último ato chama-se suicídio, senhor Presidente, possível em uma variedade de formas, ao gosto das sensibilidades do freguês, literais e metafóricas. Mas tem uma característica fundamental: por definição, o suicida extingue a si próprio sem causar danos ao seu redor.

Até as células do corpo sozinhas sabem disso. Aliás, é o suicídio cotidiano de muitas, que se expurgam, que mantém nossos corpos vivos mais um dia.

Mas seres humanos têm opções, senhor Presidente, como ligar 188, para o Centro de Valorização da Vida. Se, ainda assim, o senhor achar que todo mundo morre, então para que tanto esforço com vacinas e saúde?

Por favor, lembre-se de não nos levar junto. Nós que queremos continuar curtindo os esforços cotidianos da vida.

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