Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

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Suzana Herculano-Houzel
Descrição de chapéu Mente universidade

Cientista precisa ser um bicho flexível

Inteligente é a tecnologia que deixa a gente pensar em vez de entregar tudo pronto

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Cheguei à Austrália para ensinar colegas a transformar em sopa os cérebros de criaturas locais –insetos, abelhas, aranhas e, já, já também, águas-vivas inteiras variadas. Porque eu quero saber se é verdade mesmo que bichos dez vezes maiores têm dez vezes mais células e nada como a simplicidade de águas vivas, praticamente desprovidas de órgãos internos, para responder a essa pergunta.

Mandei de antemão a lista de ingredientes, digo, reagentes e materiais, incluindo um microscópio de fluorescência, equipado, além de luz branca, com luz ultravioleta, necessária para podermos ver e contar os núcleos das células dos cérebros transformados em sopa –porque o truque para contar células é não contar as células, e sim o núcleo guardado feito semente dentro de cada uma. Neurônios são células peculiares, cheias de braços e protrusões e penduricalhos, e de tamanhos variados, que não se espalham igualmente pelo tecido, tornando difícil a tarefa de contá-los por amostragem.

Organoide cerebral visto por um microscópio eletrônico, com os neurônios tingidos de magenta
Organoide cerebral visto por um microscópio eletrônico, com os neurônios tingidos de magenta - Jesse Plotkin/Johns Hopkins University

Mas, transformando o cérebro em sopa, vão-se os neurônios, dissolvidos em detergente, e ficam os seus núcleos, agora livres na sopa. Contá-los na sopa é trivial: basta colher pequenas amostras da sopa e olhá-las ao microscópio numa câmara graticulada, onde cada quadradinho tem um mesmo volume. São dez minutos para contar quantos núcleos cada quadradinho da sopa contém, e daí é uma regra de três simples para chegar ao total de células no cérebro todo.

Meus colegas me receberam com tudo pronto, incluindo um microscópio instalado pela universidade especificamente para nossos experimentos, imagina só. Um Olympus modernoso, todo eletrônico, com câmera digital operada por software no computador ao lado, painel sensível ao toque para controlar as lentes e a luz do microscópio. Luz branca, gratícula à vista, certo. Luz ultravioleta, núcleos pintados de azul fluorescente visíveis, certo também.

Mas não era possível usar as duas luzes ao mesmo tempo, o truque fundamental para contar núcleos por quadradinho. O microscópio era chique demais, e todo automatizado para fazer o que quase absolutamente todo cientista faz ao microscópio, que é usar OU luz branca OU ultravioleta. Nenhum engenheiro da Olympus considerou que alguém poderia querer usar uma E outra ao mesmo tempo.

Cientista tem que ser bicho flexível. Tentei minha gambiarra de tempos da UFRJ, quando a luz branca morreu e levaria US$ 500 e dois meses para conseguir uma nova: a luz da lanterna do telefone, posicionada estrategicamente. Mas não dava: o Olympus chique era todo fechado.

Fomos salvos pelo microscópio bobão esquecido num canto do laboratório, todo manual, portanto com aquela coisa linda de a gente ligar e desligar cada botão à vontade. Usar as duas lâmpadas ao mesmo tempo foi trivial. Problema resolvido: adoro tecnologia, mas nada como equipamentos simples com controles transparentes, que permitem ao cientista fazer o que der na telha.

Inteligente é a tecnologia que deixa a gente pensar em vez de entregar tudo pronto.

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