O Pior da Semana

Escritora Tati Bernardi transforma em coluna as perguntas enviadas por leitores da Folha

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O Pior da Semana
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Por que você se expõe?

Temo o dia em que eu tiver as respostas mais corretas, exatas e honestas sobre meu modo de escrever; certamente neste dia eu não poderei mais redigir uma linha sequer

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Tati Bernardi responde aos comentários mais estranhos e às perguntas mais inusitadas de seus leitores.

Marco Antônio quer saber por que me exponho em minhas crônicas e livros. E ainda: quanto "meu personagem" tem de "pessoa real" e quanto tem de invenção.

Há pelo menos duas décadas, outros leitores, sobretudo os que têm interesse em se tornar escritores, me fazem as mesmas perguntas. Temo o dia em que eu tiver as respostas mais corretas, exatas e honestas sobre meu modo de escrever; certamente neste dia eu não poderei mais redigir uma linha sequer.

A colunista Tati Bernardi
A colunista Tati Bernardi - Arquivo Pessoal

Posso tentar responder com suposições? Fui uma criança que se sentia muito sozinha. Eu estava rodeada de afetos e cuidados de meus pais e avós, mas era um olhar mais voltado à minha saúde física. Até hoje, eu sou compulsiva por exames de sangue, ultrassons, ressonâncias, provavelmente fruto desta investigação um tanto inútil aprendida na infância.

Contudo, se eu quisesse verdadeiramente conversar sobre tristeza, angústia, descontrole e medo, a escuta para tal era um tanto limitada. Minha mãe era a que mais tentava, mas logo já me dava uma coça pra eu ir pra vida, porque frescura faria de mim uma "zé ninguém".

Acredito que, em sua desafetação, mamãe fez um milhão de vezes mais por mim do que uma mãe filósofa ou psicanalista poderia ter feito. Olhando pra trás, se tem uma coisa que eu fiz (e curiosamente só pude fazer porque escrevi sobre tristezas, angústias, descontroles e medos) foi me movimentar pra frente.

Desde novinha, eu tinha uma sede de me conectar com outras pessoas que pudessem pensar e sentir como eu. Eu tinha algo "não ok" dentro de mim, e me irritavam as crianças muito esportistas, solares ou as alunas focadíssimas.

Mesmo esbanjando uma constituição psíquica notavelmente feliz e amparada, eu alcançava lados em mim que eram sombrios e assustadores demais pra idade. Passei uns 15 anos da vida com anorexia nervosa, crise de pânico e o que, graças a Deus, ninguém na época medicou, mas tinha muita cara de ser (hoje eu sei) um misto leve de bipolaridade com transtorno de déficit de atenção.

Eu ia e voltava da escola, todos os dias, pensando: o que vai ser de mim no futuro? Bem, todos os meus melhores amigos da escola viraram engenheiros, médicos e constituíram suas famílias bem tradicionais e bem copiadas de seus antepassados.

Apesar de eu ser uma sonsa de óculos e aparelhos fixos nos dentes, eu não queria nada daquilo pra mim. Eu queria ser artista. E onde estavam os meus? Como eu os encontraria pra não me sentir tão sozinha? Eu pensava em mandar uma carta para o jornal, contando exatamente como eu era e convocando outros seres que porventura pudessem ser tão estranhos quanto eu.

Que surpresa quando eu percebi o tamanho do meu público (e que não precisava ter alma de artista pra sentir tudinho igual, portanto, no meio daquelas pessoas perfeitinhas ou sem sal da escola, da faculdade e dos primeiros empregos, deveria ter pelo menos uns 60% de malucos disfarçados de gente chata).

Sou filha única, de pais separados, e até os 25 anos morei com minha mãe, uma mulher muito forte, convincente e sedutora em seus argumentos. Lembro claramente de desejar, enquanto vivi sob o mesmo teto que ela, que minhas discussões pudessem ser televisionadas para todo o país e então as pessoas em suas casas poderiam votar na candidata menos variada da cabeça.

Nunca tive um pai, um irmão, um parente sequer, para intervir em nossa relação e dizer: "opa, só hoje, apenas hoje, a menina tem razão". Então passei mais da metade da vida querendo a opinião dos outros sobre a minha vida. E nunca mais parei de precisar dessa opinião.

O mesmo desejo eu levei depois para todas as minhas relações no trabalho, nas relações fraternas e no amor. Sempre que eu estava em qualquer situação, eu pensava "o que um público diria dessa cena?". E assim, por esse desejo desenfreado de me narrar, de conectar com os outros, de me sentir menos sozinha, de emocionar, provocar, convocar outras pessoas, eu comecei a escrever aos 19 anos e nunca mais parei.

Na adolescência e juventude, minha mãe, quando me achava quieta e estranha demais, tinha a mania de espiar meus diários. Em vez de me sentir invadida, lembro de, por essa razão, começar a escrever de um jeito que pudesse provocá-la e preocupá-la ainda mais.

Já que era pra ter algum público, ainda que fosse uma só pessoa, que ela pudesse sentir algo forte ao ler minhas palavras. Hoje escrevo pra milhares de pessoas, mas sempre focada em provocar apenas uma. E cada hora muda "o endereçado".

Alguém que me magoou, irritou, largou. Alguém que quero conquistar, enojar, deixar excitado. Alguém que não soube ouvir exatamente o que eu pensava e sentia, então agora vai ter que me engolir. Alguém que me ferrou demais e precisa ser exposto. Eu também escrevo muito movida por vingança.

Por último, acredito que eu escreva pra existir. Eu não chamava muita atenção na escola. Tinha essa cara muito normalzinha. Não era nem bonita e nem o epicentro do bullying. Nas festas, na hora do recreio, nas reuniões em família, na classe, no trabalho, pra eu chamar qualquer atenção, eu precisava ser rápida e piadista.

Levei este potencial para meu trabalho como autora e roteirista. Como mulher, tudo que eu quis fazer, precisou antes lutar contra o patriarcado vigente. No caso de qualquer mulher, e sei que tenho privilégios por ser branca, se expor é também um grito, um basta e uma forma de fazer política. Isso tudo ficou mais claro pra mim nos últimos anos.

Bem, Marco Antônio, sobre se sou eu ou um personagem, essa resposta mereceria outro longo texto.

Enquanto estou aqui sempre perplexa vendo meus dedos se mexerem, sempre me pergunto quem é que escreve em mim e por mim. Tem horas que pereço ter sido tomada por um espírito. Na vida comezinha, quando vou a uma farmácia, por exemplo, muitas vezes me sinto uma personagem hipocondríaca falando das dores crônicas pra um desconhecido.

No meu livro "Depois a louca sou eu", discorro sobre todas as minhas crises de pânico. Mas, quando um repórter me perguntou na época do lançamento o que um autor autobiográfico conseguia esconder, lembro de ter respondido: "Como eu sempre exagero, a verdade está sempre protegida".

Muitas vezes, redijo uma crônica que é 50% fantasia da minha cabeça, mas, semanas depois, eu já não lembro mais se aconteceu ou inventei. A verdade é que eu e todas as minhas personagens nunca entendemos direito o que estamos fazendo. E por isso é tão bonito, prazeroso (e dá certo).


Tem algum questionamento inusitado, uma reflexão incomum ou um caso insólito para contar? Participe da coluna O Pior da Semana enviando sua mensagem para tati.bernardi@grupofolha.com.br

Catarina Pignato

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