Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Meu Deus

Ninguém decente está ao lado do conservadorismo

Devotos de Nossa Senhora Aparecida em oração na Capela das Velas no Santuário Nacional de Aparecida
Devotos de Nossa Senhora Aparecida em oração na Capela das Velas no Santuário Nacional de Aparecida - Victor Moriyama - 2012/Folhapress

Ontem tive enxaqueca e rezei. Uma dor com ondas de enjoo descontrolado, fotofobia e medo de nunca mais ser feliz. Daí, como sempre faço, me tranquei no quarto, no escuro, e mandei ver na reza. Eu nunca melhoro durante uma oração fervorosa ou logo depois dela, e sim exatamente uma hora após tomar maravilhosos fármacos cuja bula informa: “melhora depois de uma hora”. A chance de o Dorflex combinado com o Vonau sublingual terem me curado é infinitamente maior do que ter sido um Cara sentado lá no céu, numa poltrona Mole Sergio Rodrigues ou The Egg azul-turquesa. Porém, amigos: eu rezo. Desde muito pequena e sempre —e hoje acho que, se bobear, já dei minha rezadinha.

Eu costumo me benzer em frente a igrejas, cemitérios e outro dia fiz o sinal da cruz quando passei numa lombada eletrônica —apenas porque numa espécie de “automático bruto” eu sabia que tinha que fazer alguma coisa (no caso, desacelerar), então me confundi e mandei ver no “em nome do pai, 
do filho e do Espírito Santo”. 

Desde o tempo em que usava ingênuas meias até o joelho no colégio católico, li alguns livros e muitas matérias que inundaram minha racionalidade de ateísmo. A Inquisição (voltando agora na versão redes sociais), o apoio ao fascismo pelo papa Pio 11, a lavagem de dinheiro no Vaticano, a pedofilia de padres, a Bíblia e suas passagens misóginas (até hoje a palavra “pecado” aparece na minha boca e eu engulo em seco). O atraso nas urgentes discussões sobre a legalização do aborto e da maconha, os obstáculos criminosos na plena e clara divulgação de como evitar doenças sexualmente transmissíveis, a oposição a métodos contraceptivos, a disseminação de ódio por todo e qualquer humano que não faz papai e mamãe e não ocupe tais “lugares” sem amplitude de gêneros. Ninguém decente está ao lado do conservadorismo. 

Estou com o filósofo e neurocientista Sam Harris, que escreveu o livro “A Morte da Fé”, impelido, sobretudo, pela sua indignação ao saber que o 11 de Setembro teve motivações religiosas. Sim, milhões de pessoas têm a vida destruída por causa de suas crenças, e a ciência é que deveria ser o nosso oráculo sobre “o bem e o mal”.

Tenho idade e instrução suficientes para não falar com um Cara sentado numa Berger enfeitada com rococós dourados. Então um bebê palestino é queimado, um garoto de uniforme escolar é baleado, uma criança síria é devolvida morta pela onda do mar gelado, e um Cara sentado numa poltrona Luís XV toda trabalhada no capitonê vai se preocupar com mais uma de minhas cefaleias? Ou, como diria alguém clichê querendo ser menos boçal num daqueles almoços com gente boçal querendo ser menos clichê: “Onde estava Deus quando o Trump separou as crianças de seus pais?”. Ele estava puto. Volto a dizer, sem vergonha, que rezo quase todos os dias, faço promessas, vou à igreja de Aparecida, coloco flores para Santa Rita, leio sobre o budismo, tento meditar, peço a Deus que me ajude a não vomitar (tenho pavor), levo terço quando pego avião, levo os santinhos do meu avô quando pego estrada, faço lista de pessoas “para quem eu quero mandar uma luz de amor” na noite de Natal e não acredito que minha filha seja apenas um fenômeno químico e biológico. 

Meu Deus não está sentado tecendo preconceitos, tampouco está de pé apontando o dedo em riste para meus wet dreams. Ele é um Cara bacana e tem verdadeiro horror à bancada evangélica. Ele vai a casamentos gays e está ao lado de mulheres que não querem ser mães. O que se aprende a amar na infância fica incrustado no peito. Fica escrito, tatuado, perfurado. E eu aprendi a amar o Deus que inventei. 

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