São três da manhã e uma moto acelerada agitou minha cachorra, que assustou minha filha, que me acordou. Pensando melhor, eu acordei foi com a moto —ou não saberia o que desencadeou o quê. Pensando melhor sobre a hora, falta pouco para minha filha acordar definitivamente, então preciso descansar agora. Pensando melhor sobre minha cachorra, ela já vai fazer sete anos e minha última cadela morreu aos dez e eu sofri demais e não lido bem com nada que é demais, apesar de lidar pior ainda com o que é de menos. Pensando em contas que não fecham, tenho vontade de tomar um ansiolítico, mas amamentando não posso e, pensando sobre amamentar, minha filha já vai fazer um ano e talvez seja a hora de parar. Pensando sobre parar, pelo amor de Deus pare de pensar e volte a dormir. Pensando em Deus, me lembro da quantidade de gente podre que usa o nome Dele em vão: é curandeiro criminoso, político preconceituoso, um tio benzedeiro que dava passes nas crianças alisando peitos e bundas. Penso que algumas pessoas têm como religião a própria adoração —e isso parece budismo, mas na verdade é o extremo oposto do budismo. Penso em um amigo, ou Deus me livre desse amigo, que lida com parentes, conhecidos e funcionários como se fossem seus escravos pessoais, então, para ele, Deus só pode mesmo existir e estar ao seu dispor, e isso não é ter fé, mas staff, ou entourage, ou séquito. Penso no desgraçado da loja da Claro do shopping Bourbon que vendeu um celular para a minha mãe e entubou um chip como cortesia, que ela insistiu que não queria e ele insistiu que era brinde, e agora lhe cobram 50 reais todo mês por esse chip, então ela reclamou e riram de uma senhora de 72 anos. Penso nas 267 pessoas que comentaram "fizeram a mesma coisa comigo" no meu post contando o caso. Penso que defumados fazem mal para a saúde e eu nem gosto deles, penso que embutidos fazem mal para a saúde e eu detesto eles, penso que nunca lavei uvas-passas, mas li em algum lugar que deveríamos lavar uvas-passas, e as pessoas falam tão mal delas e eu sou compulsiva por elas e não sei por que penso essas coisas se eu só queria dormir. Penso que nunca vou parar de comer queijo, apesar do livro sobre alimentos que causam inflamação nas articulações. Penso que tenho dor há 14 anos e que tenho muita dor hoje. Penso em comer todo o queijo da geladeira neste momento. Penso no avô que vi no clube, brincando com os netos na piscina, penso em alugar um avô para mim, só por alguns dias. Deveria existir um Airbnb só de casas com avôs. Penso que é a vez da minha filha de ser muito criança e minha vez de ser muito adulta e isso me faz pensar em mil anos para trás e mil anos para a frente. Penso se sou boa mãe e penso que penso isso o tempo todo, o dia inteiro, mesmo antes de ser mãe. Penso que sempre confundo o Otávio Müller com o Leandro Hassum e não tenho a menor ideia de por que penso isso, penso que o Otávio Müller é o Leandro Hassum dos filmes mais cabeça com roteirista mais de esquerda e não tenho a menor ideia de por que penso isso. Penso que o steamer de cozimento a vapor em inox enferrujou inteiro. Penso que apenas um ansiolítico poderia me ajudar agora, mas eu estou amamentando e talvez seja a hora de parar. E outra moto acelera, e dessa vez a cachorra não se assusta nem a bebê acorda, mas eu levanto e como todo o queijo da geladeira. São três e cinco da manhã.
Tati Bernardi
Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.
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Não pense
Eu só queria dormir
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