Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Tenha filho

Se está em dúvida, como eu já estive um dia, este texto é para você

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Se você não quiser ter filho, não tenha. É chato, é difícil, dá tranquilamente pra ser feliz sem eles. Mas se está em dúvida, como eu já estive um dia, este texto é pra você.

Quando minha filha enjoa de uma brincadeira, ela segura meu rosto com suas mãozinhas pequenas e fala baixinho: “Chega, mamãe”. Ela sabe que eu estou fazendo aquilo para diverti-la e não quer me magoar, então, com seus dois aninhos, toma todo o cuidado para me dizer que já está de saco cheio das minhas palhaçadas.

Às vezes ela me chama no meio da noite e diz que está precisando do meu “colinho”. Nessa hora, apesar do sono e do cansaço, eu sinto que valeu a pena ter nascido e estar neste mundo, neste país, nesta casa. Parece que existi 40 anos apenas para ouvir essa frase.

Ritinha decidiu que não quer mais que eu leia para ela. Agora quer que fiquemos simplesmente deitadas lado a lado, cada uma com seu livro.

Ela faz de conta que está entendendo as letras e “lê” de mentirinha historinhas reais como “mamãe brava comi massinha não pode daí comi papel mamãe brava de novo”. De uns tempos pra cá, ela me abraça bem forte e faz um “ahhhh” de prazerzinho. Amigo, amiga, tenha filho.

A opção pela maternidade deve ser pesada na balança com outras possibilidades que também te fariam feliz
A opção pela maternidade deve ser pesada na balança com outras possibilidades que também te fariam feliz - stock.adobe.com

Desde que aprendeu a negociar obediência em troca de comida, ficou ainda mais divertido. Peço beijo, e ela responde: “chocolate”. Peço que pare de gritar, e ela retruca: “pão de queijo”. Digo que está na hora de dormir, e ela faz carinha fofa: “ioguti”. Se puder, se quiser, eu lhe garanto que vale todo o perrengue. Sim, tenha filho.

Estamos confinados há 15 dias. Porque meu estilo literário pede que eu evite doçura e positividade, escrevi uma coluna sobre o inferno que seria aturar a família sem escapes. Mas preciso ser honesta e dizer que, apesar da angústia, da tristeza, da saudade, do medo e da perda de controle em que estamos mergulhados, às vezes me pego cantarolando no banho. Ter filho é estar apaixonada pra sempre.

Apesar de um vírus e um presidente assassinos, o que vejo todos os dias, quando entro pela manhã no quarto da minha filha, é pura pulsão de vida em forma de garotinha maravilhosa.

Acordada, disposta, curiosa, querendo aprontar, pular, subir nos móveis. Querendo desmontar a casa, cheirar tudo que tem na fruteira. Soltando minha mão, agarrando minha mão. Um humaninho em estado bruto com vestido de bolinhas.

Seus olhos são enormes e muitas vezes engolem os meus, apertados de desesperança e exaustão. Diariamente, Ritinha estraçalha com seus dentinhos minhas ironias, meu egoísmo, minha preguiça e me cospe uma mãe renovada. É preciso ser mãe apesar de tudo —e, apesar de tudo que eu faço de errado, ela segue me entrelaçando com seus braços e pernas para que eu não me mova para longe. Tenha filho.

Desde que eu não posso mais enlouquecer, não enlouqueço. Desde que eu não posso mais desistir, não desisto. Desde que eu não posso mais me entorpecer, nem lembro que isso existe. Eu estava com ela no avião e comecei a ter uma crise de pânico. Eu estou com ela em quarentena e comecei a ter uma crise de pânico. Não tive, não tenho mais, passou. Tenha filho.

Eu lhe disse que não podia pegá-la no colo porque estava com o joelho machucado. Ela quis ver, procurou por algum machucado, não acreditou, exigiu o colo.

Eu sempre fui essa pessoa chata que não acredita em portas fechadas. Abri todas que eu quis. Ver nela a minha vontade de conseguir todas as coisas me lembrou da minha vontade de conseguir todas as coisas. Tenha filho.

Vai ficar tudo bem. Eu sei que vai dar tudo certo, precisa dar. Eu tenho uma filha.

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