Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu É Coisa Fina

'Trânsito', de Rachel Cusk, é brilhante e tortuoso

Segundo volume da saga que começou com 'Esboço' é desafiador

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Trânsito

  • Preço R$ 59,90 (200 págs.)
  • Autor Rachel Cusk
  • Editora Todavia

Esta é uma coluna de dicas de livros com até 200 páginas. Portanto, como se trata de recomendações, eu só resenho aquilo de que gosto. Acontece que, especialmente hoje, eu vou indicar um livro espetacular e, ao mesmo tempo, dizer que o meu processo de enamoramento por ele enfrentou dificuldades.

Uma batalha chegar ao final de “Trânsito”, o segundo volume da saga que começou com o também excelente “Esboço” e consagrou a canadense Rachel Cusk. A própria autora assume ser uma obra para um tipo de leitor bastante ativo, aquele que insiste em retirar enredos possíveis de uma trama que... qual trama? O tempo todo você se pergunta: para onde vai esse livro? Sobre o que é?

Os amantes de uma literatura mais “fluxo de pensamentos”, neurótica, expositiva e pessoal podem considerar “Trânsito” uma aventura sinuosa. Faye, protagonista cujo nome aparece uma única vez na obra, nos entrega tão pouco sobre o que já viveu, sobre o que sente e pensa, que chega a irritar.

Uma mulher que dá vontade de chacoalhar para ver se cai qualquer coisinha que você possa usar para se sentir mais próximo ou íntimo. Mas é justamente na fria inacessibilidade dela que está a graça e a diferença da narrativa.

A escritora Rachel Cusk, em registro de 2016 - Patrice Normand/Leemage/AFP

Sabemos que é escritora e está recém-separada, que tem filhos, que está de volta a Londres depois de muitos anos, que no passado abandonou sem dificuldade um ex-namorado gente boa, que viaja para feiras literárias, que comprou uma casa cheia de problemas estruturais, que pinta o cabelo, que tem um primo rico. E muito mais do que isso ela não te conta (quer dizer: em “Esboço” ela te conta muito mais).

Para fazer uma metáfora com uma sessão de psicanálise, Faye é a analisanda que gasta horas, talvez anos, falando de todos à sua volta e nunca sobre si mesma. Que funciona como um depositário de emoções alheias, pois está perdida demais para saber o que deve e o que pode sentir. Cabe ao bom analista formar uma teia para a narradora a partir dos fios desconexos que ela traz sobre a vida dos outros.

Engraçado pensar no passado extremamente autobiográfico de Cusk, que já narrou em outros livros, ainda sem tradução no Brasil, suas intempéries com a maternidade, a história do seu divórcio, um ano sabático na Itália com a família, e chegou a ter de tirar uma de suas obras de circulação mediante ameaça de processo (uma pessoa se sentiu exposta).

Talvez “Trânsito” seja uma resposta aos críticos que a acusaram de violar a privacidade das crianças ou de ser egocêntrica demais. Deve ser exaustivo conviver com jornalistas ou leitores que não entendem que escrever, por exemplo, sobre o fim de uma relação amorosa é dar voz a todos nós, e não descrever o próprio umbigo (e, ainda que fosse isso, ela é uma escritora! Ela pode!).

Muitas vezes, durante a leitura de “Trânsito”, tocamos a banalidade da vida, viramos páginas atrás de páginas deitados ao lado de nossa mortalidade e existência comezinha. Não existe suspense, humor, drama, promessa, começo, meio, fim, nada que nos dê a mão e facilite a leitura. Todos as pessoas que cruzam o caminho de Faye, de uma forma ou de outra, falam sobre liberdade —e eu penso ser essa a única espinha dorsal do livro.

A liberdade de escrever sobre os outros, de escrever sobre si mesmo, de não escrever cartesianamente, de não agradar, de não fazer sentido. Inclusive, a liberdade de abandonar a leitura do livro todas as vezes que você tiver vontade.

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