Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Jovem talento

A subserviência consentida como um jogo de poder, ousadia e liberdade

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Esses dias eu me lembrei, comovida, do prazer de ser tola e arrogante e me considerar um “jovem talento”. Uma época em que eu escrevia cinco piadinhas em uma A4, corria até a mesa de alguém que tivesse cerca de 40 anos e esperava, em pé e abanando o rabo, por um afago.

Então esse ser, ao mesmo tempo imenso e um tanto curvado, que ria de leve, algo cínico, algo generoso, me lançava uns dois ou três biscoitinhos. E eu devorava o primeiro, curtia bem devagar o segundo e dormia de conchinha com o terceiro por dias. Minha vida era dedicada a agradar aos adultos de verdade, essa gente com cerca de 40 anos que aprendeu a chegar nos lugares, quaisquer que fossem eles, com o charme desistente de quem acha tudo um tédio. Essa gente que, na hora de resolver problemas burocráticos aparentemente impossíveis, não recorre mais a tios experientes ou bem relacionados —até porque, ao contrário disso, já foram eleitos como tais por seus sobrinhos.

Pilha de biscoitos caninos em forma de ossinhos verde, laranja e amarelo
Biscoitos caninos - Bert Folsom/Adobe

Eu tinha verdadeira adoração por aquelas mulheres com bolsas caras e maquiagem quase imperceptível, porém importada. Mulher que falava firme e falava bem e fazia os homens rir. Mulher jornalista, redatora, roteirista, escritora. Minha mãe dizia que escritor ganhava mal, pior ainda se fosse mulher. Uma vez uma delas, minha chefe, me pediu que lhe pagasse uma conta. Liguei no Fone Fácil do Bradesco e a voz robótica falou: “Disque 2 para saldo da conta corrente”. Eu não podia, não devia, eu só tinha que pagar a conta dela. Mas disquei e jamais vou me esquecer: “Você tem 50 mil reais”. Meu Deus! Não era na aplicação, era ali, como quem não quer nada. Cinquenta paus assim, de bobeira. Uma mulher redatora com 50 mil reais na conta corrente lia meus textos e gostava de mim.

Eu acordava e dormia em nome disso. Aquilo eram 458 pais e 895 mães me adorando, me mimando, me dizendo: “Venha, filha, deite-se aqui em meu sofá de couro, aprecie a minha biblioteca enorme, um dia isso tudo será seu”.

Queria até aquele abaulamento entre a C6 e a C7, o peso de uma fadinha morta usada como intenção de echarpe, o óbito do deslumbramento as empurrando a tentar mais e melhor e realmente. Eu não parava quieta, eu andava de um lado para o outro, eu tinha a inquietação de um bebê demônio. Eu queria escrever e eu me forçava, mas eu fazia isso rápido e corria para mostrar.

E levava bronca e ficava excitadíssima e voltava de novo e de novo. Uma filha, uma cadelinha. Eu invejava as pessoas de 40 aterradas em seus corpos, em seus buracos de pertencimento. Eu voava e era delicioso, mas meu norte era um dia entristecer um pouco para poder ser alguém. Eu queria os biscoitos de todos. Homens e mulheres que me diziam: “Ô, menina, vem cá, eu circulei aqui suas melhores ideias”. E eu confundia tanto aquele amor que acabava na cama de algumas pessoas. E não era para “conseguir vantagens no trabalho”. Era para enfiá-los em mim. Era pra canibalizá-los. Eles eram inteiros meus biscoitos, e eu os devorava depressa ou aos poucos ou os levava para dormir de conchinha. A subserviência consentida como um jogo de poder, ousadia e liberdade.

Três linhas minhas que saíssem em uma revista. Um título com quatro palavras em um jornal. Um tijolinho no fim da página. Disparar um texto para 76 emails e colecionar o ar doendo dentro do peito: “Quem sabe um dia”. Palavras e acenos de futuro. Que saudade de fantasiar com a vida que levo hoje.

Achar-se um jovem talento é gigante, é ter uma existência inteira pela frente. Depois, talvez, você se torne um adulto que faz uma ou outra coisa direito. A sensação nunca será a mesma. Se eu olhar para o lado da minha mesa ainda consigo vê-la. Toma aqui seu biscoito.​

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