Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

O corpo

Eu moro dentro da minha cabeça e acho todo o resto da vizinhança estranho

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Sempre que passo em frente a uma academia de ginástica, sou tomada por uma sensação de estranhamento. E nem é porque aquelas pessoas estão ali aglomeradas e suando em meio a uma pandemia. Eu já me sentia assim muito antes: como elas fazem pra lembrar que têm um corpo e que esse corpo precisa ser exercitado? Como fazem pra carregar esse corpo até um espaço cheio de aparelhos pra malhar o corpo e, de fato, se entregar por no mínimo 45 minutos (menos que isso, dizem que não faz efeito) a melhorar o desempenho desse corpo?

Quem repete essas perguntas de forma obsessiva–a ansiedade– é a única responsável por aumentar os meus batimentos cardíacos e me fazer suar –e, a depender das crises, emagrecer. Eu moro dentro da minha cabeça e acho toda a vizinhança bem estranha.

Eu me sinto uma mocinha de cinco centímetros que habita uma cachola. Sei que para além da minha vidinha tem um pescoço que, por sua vez, depende de um tronco que ramifica lá nuns braços molengas, e segue o jogo até os pés.

Não posso dizer que passo incólume, sem ser notificada de minha constituição física. Acontece que meu corpo, louco por atenção, cansado de ser rejeitado, dói muito. Escápulas, trapézio, lombar, joelhos. Eu poderia me exercitar em vez de gastar metade do meu salário com fisioterapia e outros tratamentos, mas nesses lugares eu posso me manter dentro da minha cuca, viajando nos meus pensamentos. E os especialistas em corpo que se ocupem do meu. Eles que estudaram sobre essa besteira, e não eu!

Não estou dizendo que sou cabeçuda, que passo o dia criando maravilhas. Boa parte do tempo eu gasto com assuntos como "Foi indireta pra mim ou não?" ou "Se eu já fiz a lista de pendências da minha casa no computador, por que estou reescrevendo tudo no papel?".

Uma vez assisti a uma palestra de um guru sexual para escrever uma série de TV, e ele explicava sobre "botões do orgasmo"-- onde tem que apertar, beliscar e torcer. Uma hora eu levantei a mão e falei: "Guru, mas, se a historinha sobre o cara criada na minha cabeça for uma historinha de merda, ele pode ter 67 línguas que eu vou preferir dormir. Eu acho que transo com a minha historinha, tudo bem?". Ficou um silêncio enorme. Suspeito que as pessoas que se interessam por esse tipo de curso são as mesmas das academias.

No dia em que vi dois risquinhos no teste de gravidez, achei que estava prenha somente no cérebro. Eu só pensava, pensava, pensava. Que mãe vou ser, que bebê terei, que avó será a minha mãe, que pai será meu marido? Fazia listas e listas e mais listas. Meu corpo precisava ir ao obstetra e, incomodamente, eu tinha que ir junto. Quando comecei a vomitar, foi um baita susto. Era fato que algo estava acontecendo para além do lugar que eu residia. Era muito estranho gerar algo no corpo e não apenas na mente. E minhas amigas que comentavam, depois do parto, sentir falta "da barriga", tendo em sua vida um filho, sempre me causaram certa depressão. Amiga, você tem uma criança nos braços! Dane-se o seu ensaio fotográfico parecendo uma elefanta seduzida pela mãe natureza!

Está na moda o conceito de autocuidado. Você já esfoliou a pele hoje? Reservou um momentinho todo seu para se tocar? Eu só lembro de me "acariciar" quando preciso acalmar meu eixo hipotálamo-pituitária-adrenal, que sobe a voz e entra em looping: "GRITA E CORRE, GRITA E CORRE, GRITA E CORRE!". Eu só como porque causa uma explosão de felicidade no meu sistema de recompensa.

Eu invejo as pernas, a bunda, os braços das pessoas que os habitam. Mas invejo pouco, e passa rápido.

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