Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu maternidade

Bate-se numa mãe

Antes que eu começasse a cuspir sangue pela casa, marquei a primeira analista

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Numa tarde, ao se ver obrigada a escovar os dentes, minha filha me deu um tapa na mão. Eu disse que não podia, segurei de leve seus bracinhos: "Não, não, não!". Naquele mesmo dia à noite, ao se negar a tomar banho, ela me deu um pequeno soco no ombro. Coloquei de castigo por 20 segundos, com a porta fechada (sem trancar). Ela ficou assustada e me acertou de novo, agora com um chute bem dado na canela. Eu então, entre a contusão e meu irrefreável amor, ofereci um colo e a acalmei. Disse que mamãe a ajudaria a lidar com a raiva e que ficaria tudo bem.

Lembrei as minhas crises de pânico, quando eu seria capaz de inventar uma infecção por ebola para que um avião me deixasse sair. Tem coisas que a gente não controla, e ela só tem três anos! Minha filha aceitou o chamego e aproveitou para cavar uma soneca. Depois de uma hora, quando eu precisei tirá-la do meu colo para fazer qualquer outra coisa que não fosse necrosar meu antebraço, a afastei com delicadeza e levei mais um safanão. Dessa vez na cara, de mão aberta, com toda a força. Antes que eu começasse a cuspir sangue pela casa, marquei a primeira analista.

Sentadas sobre um sofá cinza, uma mulher e uma menina brancas brincam com fantoches
Mãe e sua filha - Adobe Stock

A terapeuta infantil me ensinou que não adianta falar "não pode". Tem que falar "não pode" com a certeza, a autoridade e a confiança de quem fala "não pode nem a pau sua psicopatinha mirim". Tinha que ser um "não" com a exasperação e o terror de quem encontra um filho tentando pular de uma janela do vigésimo andar.

Ensaiei um timbre autoritário e enérgico. Treinei comandos e negativas assustadores no espelho, imaginando que eu estava de frente para um bolsonarista tentando me enfiar um "kit Covid". Minha mãe nunca me bateu (salvo um beliscão quando eu demorei 14 horas para fazer xixi num potinho para um check-up), mas eu sempre tive pavor dela. E tenho até hoje. Ela me olha e eu já quero ajoelhar e pedir perdão por ter nascido e perguntar se estou com bafo. Que postura ou poder será esse que jamais tive e jamais terei perante minha filha ou qualquer pessoa? A analista me chamou de banana, rompi com ela e procurei outro psicanalista.

"Você tem que conter sua filha, ela precisa ficar imobilizada até se acalmar." Lembrei quando tivemos que fazer exame PCR em seu narizinho perfeito. Eu, o pai e mais duas enfermeiras quase não demos conta. A bichinha é muito forte, decidida e afrontosa. Se não tem como usar as mãos e as pernas, ela morde ou provoca em si uma tosse-engasgo que me deixa paralisada.

A despeito do tanto que estou preocupada e cheia de hematomas, confesso que me pego encantada observando essa criatura pequena, com sua vozinha fina e trêmula, com as mãos na cintura, tentando me convencer de que jantar pipoca é o melhor a se fazer.

Não está certo bater. E as avós, a babá, o pai, minhas amigas e todos os analistas sempre deixam bem claro que a culpa de a minha filha me bater é minha. Da mãe. Dessa que não colocou limite. Dessa que beija e recorre aos seus chamados em looping submisso. Dessa que tentou abraço, contenção, castigo, grito, conversa, oito analistas, 67 livrinhos, exercícios de respiração, fitoterápicos e segue apanhando diariamente –da minha filha e de todos que me criticam.

Ser mãe é de uma solidão atroz. Eu não gostei da gravidez, eu trabalhei muito enquanto amamentava, eu não quero outro filho, eu não gosto de ser mãe às cinco da manhã (e outras tantas vezes). Talvez eu ache que mereço apanhar. Talvez eu goste. Talvez eu esteja tão acostumada a me maltratar psiquicamente, e a aceitar que os outros também o façam, que o toque enfurecido da minha menina seja hoje o meu principal afeto. A única certeza que eu tenho é que jamais vou criar uma criança com medo de mim.

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