Crime violento, acidente, piada ou declaração política?
Todo mundo pergunta para Kayleigh qual foi a pior coisa que ela já viu. Ela responde: a live de uma garota cortando o próprio braço; um homem matando seus gatos e depois brincando com o corpo dos bichinhos e a frase "Hitler deveria ter terminado o seu trabalho" na legenda de uma foto com imigrantes dentro de um barco.
Mas sua tia, sua médica, seus amigos e o advogado que a persegue querem sempre saber mais. "Mas o que de pior você viu?". E então ela decide contar sua história.
Kayleigh, recentemente rapinada por uma ex-namorada interesseira e exausta das ofensas que ouvia como telemarketing, estava desesperada por mudança e por mais grana quando aceitou trabalhar em uma firma terceirizada chamada Hexa.
O novo trabalho consistia em avaliar textos, fotos e vídeos para "uma grande e poderosa empresa de tecnologia". Sempre que usuários e robôs da plataforma sinalizavam que um post havia sido ofensivo, cabia a ela e aos seus colegas decidirem se a postagem deveria ou não ser removida.
As diretrizes precisavam ser decoradas, ainda que parecessem confusas: o vídeo de alguém jogando um gato pela janela só é permitido quando não houver crueldade; mamilos femininos e desenhos de vaginas não podem, enquanto mamilos masculinos e desenhos de pênis estão liberados e, por fim (mas tão atual pra gente), é possível desejar a morte de um pedófilo, mas não a de um político.
No teste que fez para conseguir a vaga, a protagonista narra que "pegou" o vídeo de um homem com o braço em chamas e ficou na dúvida: crime violento, acidente, piada ou declaração política? Sua avaliação deveria ser muito precisa para não criar problemas para a "plataforma poderosa" pois, caso a resposta afirmativa fosse "declaração política", o vídeo deveria permanecer no ar ou sua remoção violaria os códigos de liberdade de expressão vigentes no país.
Foi quando teve a brilhante ideia de aumentar bastante o som para perceber que o homem pegando fogo berrava, alto e estridente, em profundo sofrimento. Conseguiu a vaga.
Durante o período que suportou horas diárias de conteúdos criminosos, violentos, suicidas, sádicos, perturbadores e pornográficos, Kayleigh acreditou ter feito bons amigos no trabalho e ainda se apaixonou por Sigrid. Mesmo notando que alguns desses colegas podiam soar racistas, negacionistas e ignorantes: "é bastante irônico dizermos as mesmas coisas que removemos durante o dia todo —mas nossas piadas são mais um flerte excitante com o proibido do que uma forma de comentário moral, e talvez também apenas uma maneira de provar o quanto somos fortes e vitais para nós mesmos e uns para os outros".
"Este Post Precisou Ser Removido" é o sétimo livro da holandesa Hanna Bervoets, mas o primeiro traduzido para o português. Torço para que este lançamento abra portas para suas outras obras. Seu texto é uma mistura improvável: acessível, profundo, rápido, esperto, sensível, desolador, complexo, frio, cínico, honesto, explosivo, tudo muito parecido com a velocidade perturbadora e impossível das redes sociais.
Ao final do livro, Hanna afirma que nunca trabalhou na Hexa e garante que a história e os personagens soam tão reais e atuais porque ela pesquisou tudo o que acontece nesse tipo de empresa. Para os interessados, ela deixa uma lista com uma dezena de livros que a inspiraram.
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