Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
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Livros e dinheiro: dá para amar os dois?

Me chamem para eventos em periferias que eu vou feliz e não cobro nada

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Acabo de sair de uma reunião com intelectuais brancos da elite paulistana e percebi que eles sentiram certo nojo de mim porque, vendida e suja, ousei falar em dinheiro.

Fui chamada para ministrar dois dias de palestras presenciais –um total de seis horas da minha semana cheia e corrida– para um público que acha que faz muito pela sociedade e pelo planeta porque usa tênis Vert e camiseta A Mulher do Padre.

Acontece que essa turminha que está brincando de espaço cultural nos Jardins não tem dinheiro para me contratar, não acha charmoso cobrar dos alunos e quer me convencer de que será excelente para a minha carreira que eu saia da minha casa e vá até lá, de graça, falar de literatura. Acreditam, do fundo de seus corações herdeiros e apoiados por pais, tios, avós e bisavós, que não se deve sujar os dedões com cifrões quando o tema é o amor à literatura. Que fofos!

Uma  longa estante cheia de livros diante de uma mesa e cadeira vazia, tudo na cor vermelha, em alusão ao Stalinismo.
Angelo Abu

Me convidem para eventos em periferias e escolas públicas (sem logos de empresas ou produção de um grupo de playboys) que eu vou feliz e prometo não onerar o chamado nem com duas balas 7Belo. Mas não ouse ser uma pessoa com investimentos em fundos multimercado, detentora de um mailing de endinheirados e pedir cinco minutos do meu dia sem oferecer pagamento. O nome disso não é amor à literatura, ao cinema, ao teatro, às artes, à conexão humana; o nome disso é exploração mesmo.

Livros precisam continuar sendo ótimas desculpas para que a gente não se mate, mas usá-los como boas desculpas para não pagar quem vive deles é só sacanagem mesmo.

Então eu tenho que sair da minha casinha, falar por oito horas, vomitando para alguns desocupados não pagantes todas as minhas mil horas de leitura do ano, para ganhar o total de zero maravilhas? Eles não têm dinheiro, tadinhos (nem os que brincam de espaço cultural em bairro de milionários nem os que brincam de frequentar espaço cultural em bairro de milionários), e decidem que devo esconder a minha necessidade de pagar boletos sob um sorriso trouxa de quem finge não entender que um dos problemas do capitalismo é justamente quando algum rico hippie do bem faz com que você, que precisa de renda mensal e sustenta parentes na Zona Leste (e, para tal, cobra pelo trabalho!), se sinta espiritualmente, honrosamente e energeticamente inferior a ele.

Bem, fui lá ouvir o que o grupo de jovens playboys acadêmicos tinha a me dizer. Quanto mais eu argumentava sobre estratégias para atrair público e promoções para engajar vendas, mais o café da manhã digladiava com a pureza do suquinho gástrico do aparelho digestivo desses reis da erudição e da boa intenção.

Acho engraçado como alguns acadêmicos herdeiros acreditam de fato que estão protegidos de sujar as mãos com a imundície do lucro porque têm estantes cheias de livros. Amigo, a chance de o seu bisavô ter sido escravagista é maior do que a sua biblioteca.

Situações como essa têm se repetido com bastante frequência na minha vida. Herdeiros moradores de bairros nobres sempre me procuram com a desculpa de que vão me dar público e palco. As redes sociais já fazem isso por mim, meu bem, e já me adoecem o suficiente.

Então eu entro com milhares de horas dedicadas a leituras e estudos, e o bonitão entra com, sei lá, um mailing de contatos? De que me serve isso na hora de pagar a conta de gás? Um certo político, é notório, ficou zilionário juntando pessoas com interesses comuns, mas ele pelo menos tem a transparência de chamar os encontros que promove de "líderes que viajam para hotéis com spa L’Occitane a fim de combinarem posteriores surubas e reuniões de como fazer para se tornarem ainda mais líderes e ainda mais surubeiros".

O exemplo anterior é ruim, mas meu ponto é: dá para amar a cultura e, ao mesmo tempo, gostar (em muitos casos, precisar) de dinheiro. E se vocês sabem disso tão bem, por que sou uma escrota por dizer em voz alta?

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