Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
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Só a palavra vômito inserida na frase já me causava fobia

E há seis anos venho sendo alvejada, dos pés à cabeça, por potentes jatos azedos

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Sempre fui fóbica com gente vomitando. Se alguém reclamasse de mal-estar perto de mim, ou eu saía correndo, ou enfiava um Vonau sublingual na pessoa. Desde a adolescência, só saio de casa com uma nécessaire cheia de remédios para enjoo. Já fui embora de uma festa porque comentaram que no banheiro do terceiro andar tinha um rapaz passando mal –eu estava no PRIMEIRO andar.

Colegas prestes a golfar, golfando ou pós-golfada foram os inimigos número 1 da minha juventude. O que era um problema, porque, sabemos, nessa fase da vida existem muitos elementos que se enquadram nas três classificações acima.

Amigos, familiares e analistas tentaram, em vão, me trazer para a realidade. "Mas o que pode acontecer de tão horrível em uma cena de vômito?" Só a palavra "vômito" inserida na frase já me causava fobia, então eu mudava de assunto.

A diretora de cinema mais premiada e badalada do momento (Carol, não vou contar que é você) sempre foi minha parceira de emetofobia. Além do pavor de presenciar algum vômito, também éramos, obviamente, bastante fóbicas com nosso próprio enjoo. Carol certa vez teve intoxicação alimentar, ficou internada no hospital e não golfou. Comemoramos cinco, dez, 15 anos sem vomitar. Até que engravidei (e vomitei), e Carol me ligou para dar parabéns. "Você é meu exemplo, Tati." As duas sérias, contemplativas, emocionadas. Nada tinha a ver com o bebê em minha barriga, mas com o fato de que, num ato heroico, eu havia dispensado todo o café da manhã. Carol quase ganhando um Oscar, e eu apenas inviabilizando um tapete de lavabo.

Passei uma década a fim de um jovem talentoso que trabalhava como redator publicitário. Quando fomos pra Cannes, no festival de publicidade, ele finalmente me deu bola. Dez anos sonhando com o momento em que o rapaz me notaria. Mas me contaram que três dias antes ele tinha vomitado, e eu o deixei falando sozinho.

Grafitte
Grafitte - Jon Tyson na Unsplash

Minha estimada amiga Letícia (perdão pela exposição, mas sabemos que eu faço isso com as pessoas) passou mal em uma festa de Ano-Novo. Estávamos dançando em uma praia da Bahia quando ela virou de lado, vomitou, voltou com o rosto para a frente, sorriu para mim ("fiquei meio enjoada", confessou) e seguiu dançando. Aquilo me deixou perplexa. Como assim ficou "meio enjoada", resolveu em dois segundos e continuou dançando? Se eu ficasse "meio enjoada" seria um desfile de ambulâncias, parentes rezando e anjos enviados de volta ao plano terrestre.

Eu não sabia se a canonizava ou rompia a amizade. Não sabia se chorava, dizendo "Deus, então isso é um ser humano livre da tormenta? Que bela amostragem, senhor!", ou se protestava de joelhos: "Deus, que espécie humana bizarra é essa que me destes como parceira de esbórnia?". Vômitos me deixavam tão abismada pelo mistério da vida que nesses momentos eu costumava conversar bastante com Deus.

Viajar com amigos era sempre um suplício. Não bastasse meu pavor de ficar nauseada nas curvas da estrada, eu ainda tinha que lidar com o medo descomunal de que todos as pessoas no carro ficassem enjoadas. "Não posso vomitar, eles não podem vomitar. Não posso vomitar, eles não podem vomitar." Eu pensava isso da hora em que o carro saía da minha casa até chegar à porta do hotel.

Daí nasceu minha filha.

Há aproximadamente seis anos venho sendo alvejada, dos pés à cabeça, por inesperados e potentes jatos azedos. Minha filha já vomitou no meu cabelo ou dentro do meu sutiã e ontem cegou meu olho direito com o retorno raivoso de um suco de laranja. Sinto zero nojo, zero náusea, zero incômodo.

Toda vez que me perguntam o que a maternidade me ensinou, tenho vontade de responder: "a ser gente".

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