Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Dezembro, desgracinha psíquica na minha vida

Distraídos, passamos do nada a lugar nenhum, sentindo trecos, troços, paradas, trens

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Ah, dezembro, que desgracinha psíquica você é na minha vida. Tento chegar a uma melhor acepção do "negócio que dá no peito" para conseguir então resolvê-lo, etiquetá-lo e arquivá-lo. Mas dezembro dá de ombros para o nosso neoliberalismo estrutural e diário.

É tanta "nhaca" que nem acho graça da cena que me vem à mente: a "Angústia" como persona virando influencer feminista de Instagram e me culpando pela tentativa de objetificá-la.

Na porta de uma loja de artesanato do aeroporto de Guarulhos, eu choro de salgar por horas as minhas gengivas. Lembro dele, que sempre me trazia uns sabonetes terríveis em formato de frutas, e essa era uma das nossas piadas. Eu sinto vontade de morrer, porque nunca mais rimos de nada. A saudade que eu sinto da gente rindo de besteiras que não parecem engraçadas ao resto do mundo sempre piora em dezembro.

De repente sinto chegar o "quadrado de socos". Um murro no topo da minha cabeça, outro no meu peito, um terceiro nas minhas costas, o derradeiro no meu útero.

Na angústia sem explicação eu viro um quadrado, o que a princípio rejeito, por ser sinônimo de retrógrado, antiquado. Prefiro um cubo, minha figura geométrica favorita, meu desenho da perfeição. Espacial, exato, translúcido. Quantos cubos já desenhei num bloquinho, durante ligações difíceis... Quantos cubos quase comprei para acalmar silêncios de casas. É meu objeto preferido e meu recorrente ato falho de sonhos diurnos: "Isso é o cubo!" –quando queria ter dito que era "o cúmulo". E ainda: "É tipo isso que estou sentindo, só que ao cúmulo" –quando queria ter dito "ao cubo".

Ilustração de um peixe formado por paralelepípedos compostos por cubos menores nas cores branca, vermelha, cinza e preta.
Angelo Abu/Folhapress

Passa um vento que me deixa cubo-cúmulo para sempre, como quando nossos pais falavam para a gente tomar cuidado para não ficar vesga: "Vai que passa um vento". Não consigo mais saber –ou lembrar– com qual dos meus lados-arestas eu poderia ficar de pé, andar ou me deitar. Qual serve para quê? E isso é a dezembrite. Estou inteira, mas não sei como parecer inteira, não sei o que fazer com o meu corpo.

Não se resolve algo sem nome. Resoluções de fim de ano são uma grande mentira. Também nos enganaram quando nos ensinaram a arquitetar "resoluções de começo de ano". Distraídos por viagens estúpidas, eventos histriônicos e fotos cheias de dentes, atravessamos do nada para lugar nenhum, sentindo trecos, troços, paradas, coisas, negócios e trens.

Vamos chamar de saudades de nossos avós, saudades das mães jovens ou com mais saúde, de cenas inocentes de infância, de papel de presente embrulhado de qualquer jeito por um pai bem-intencionado, de amores antes da aversão, de amigos que já valeram tanto e que hoje nos fazem vibrar quando aparecem com berebas benignas (somos bons, não?). Mas nenhuma explicação dá conta.

Todo Natal a gente morre, e todo mundo que já morreu morre de novo, e sobre quem ainda não morreu pensamos: "Será que terá morrido ano que vem?". Todo Ano-Novo a gente morre, e todo mundo que já morreu morre de novo, e sobre quem ainda não morreu pensamos: "Será que terá morrido ano que vem?". Daí se no meio disso tudo você fica meio louco e infeliz, ainda vão dizer que você é louco e infeliz.

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