Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Todas

Única coisa boa do bolsonarismo é dar nome ao horror indizível

Bifem já era bolsonarista havia 20 anos, seus pais, havia 50, seus avós, 90

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Uma vez trabalhei com uma mulher que eu não suportava. Ficava em busca de uma definição perfeita que me salvasse de cair no clichê "nosso santo não bate". Ela tinha uns 37 anos e ainda morava com os pais num desses condomínios fechados cercadinho vip. Na hora de pedir um bife, ela dizia "BIFEM". Bi-femmm. Bih-fe-mmm. E isso me causava um tipo de comoção odiosa, uma bile em chamas que tomava todo o meu corpo.

A mulher namorava um coxa-bolha de nome Fábio –que ela chamava de Fabioam. Fah-bio-ammm. E eles sempre estavam com pulseiras vips em festas vips em barcos vips. Pulseirammms, festammms e barcoammms vipeammms. Ela falava desse jeito, e eu tinha vontade de um dia perguntar: "Esse jeito que você fala é o quê? É que língua, meu anjoammm?". Mas só de chegar perto da Bifem eu começava a bocejar e sentia vontade de me deitar no chão e colocar as pernas para cima. Bifem devia achar que seu "poder" nos enfraquecia. Contudo, o que ela causava, em mim e em outras mulheres da empresa, era uma absoluta vertigem de desprazer. A pressão caía.

letreiro em neon
Nick Fewings na Unsplash

Isso tem uns 20 anos. Era uma época horrível, em que não se falava ainda em sororidade. Então eu me sentia bastante à vontade para detestar a Bifem (e era uma delícia). Eu pertencia a um grupo de seis mulheres que almoçavam juntas quase todos os dias. E a gente era má. Muito má mesmo. Ninguém se esforçava para achar nadinha de relevante e iluminado na existência da Bifem.

Um dia, porque consigo ser ruim até com as amigas que tinham feito um pacto de ruindade para falar mal da Bifem comigo, lancei no grupo: "Será que a gente tem raiva da Bifem porque ela tem muito dinheiro? Será que é inveja? Será que a gente queria pedir drinkeammm no barcoammm do Fabioammm e cortar o cabeloammm no Loficiel-ammm?".

Ficamos alguns segundos em silêncio. Será? Concluímos que, se existisse alguma invídia, era ínfima perto de outra coisa. Mas que coisa era essa? A mãe da Bifem já parecia um baiacu com alergia de picada de abelha antes de essa cara de bolacha Maria ser moda entre mulheres que gastam uma fortuna para parecerem o joelho inchado de um jogador de futebol; seu pai era amigo do Quércia, e o Fabioammm, descobrimos, colecionava carros sem placammm e era brochammm.

O que era aquilo que sentíamos pela Bifem? Era desprezo, desdém, uma aflição na alma, uma espécie de ojeriza espiritual. Qual era o nome disso?

Há pouco mais de dois anos, descobri que a Bifem é bolsonarista ferrenha. Na época de nosso convívio, esse adjetivo-pejorativo-resumo do inferno ainda não existia. Eu me pergunto como foi que passamos toda uma vida nos sentindo péssimos ao lado de algumas pessoas sem a possibilidade de contemplar tudo o que elas eram em uma só palavra. A única coisa boa do bolsonarismo, se é que existe alguma, é enfim dar nome ao horror indizível que sentíamos por determinados sujeitos. Bifem já era bolsonarista havia 20 anos, seus pais havia 50 anos, seus avós havia 90 anos. Era isso. Simples.

Continuo amiga das mesmas seis companheiras de ruindade e sigo gostando de provocá-las. Hoje lancei no grupo: "Mas a nossa raiva da Bifem, naquela época, não é justamente o que impulsiona uma Bifem ao bolsonarismo duas décadas depois?". Ficamos alguns segundos em silêncio. Será? Concluímos que, se fôssemos minimamente culpadas, tal responsabilidade era ínfima perto de outra coisa: pedir um bife dizendo "bifemmm".

Tudo de ruim que pode existir no mundo está na quantidade de "emes" que uma pessoa coloca numa carne.

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com dois meses de assinatura digital grátis.

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