Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Eleições 2022

Quatro bolsonaristas

Nos últimos meses, pai do céu, descarrilei bonito

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Outro dia uma amiga lançou o desafio: "Existe gente legal que vota no coiso?".

Faz uns dois meses que um cara em uma moto arrebentou o vidro do meu carro para roubar meu celular. Parei algumas quadras após o susto, com o intuito de procurar um Ansiodoron perdido no meio de uma bolsa inteira cagada de cacos de vidro (e também para tirar mais um tanto de cacos de dentro do meu sutiã). Um senhor resolveu prestar ajuda. Me trouxe água, ligou para minha seguradora e ainda me pediu um Uber. Pouco antes de nos despedirmos e eu lhe oferecer minha amizade e gratidão eternas, o homem tentou me convencer de que a urna eletrônica não é confiável. Foi uma chuva torrencial de água fria bem na hora em que eu era a protagonista dançante do meu musical mental "Não estou sozinha no mundo".

Urna eletrônica sendo testada para as eleições deste ano
Um homem que me ajudou tentou me convencer de que a urna eletrônica não é confiável, uma chuva torrencial de água fria - Rivaldo Gomes - 21.set.22/Folhapress

Tem uma academia aqui perto de casa que me chamou para fazer uma "vivência" de 15 dias. Por "vivência", eles se referiam a conhecer o espaço gratuitamente, usar todos os aparelhos gratuitamente, conhecer todos os professores gatos gratuitamente e, ao final de duas semanas, ser convidada a desembolsar o valor de um doutorado internacional em medicina para me inscrever em um plano trimestral chamado "Fitness or die". Mas a real experiência foi ter conhecido uma professora de pilates que tomou para si, como poucos profissionais deste Brasil, a missão de me retirar do papel em que fui "mal esboçando-me" tal qual um quasímodo e me transformar em um corpo real e ereto. No quinto dia, eu já poderia ser encontrada pelas ruas do bairro desfilando a falsa altivez de uma bailarina de caixinha de música. Eu já estava chamando a professora de "meu anjo" quando ela me falou que só se vacinou contra a Covid porque o trabalho exigiu. Tem horas que a má postura é um ato político.

Ontem eu travei a lombar e, nas muitas horas em que fiquei deitada sob efeitos de tramadol e ciclobenzaprina, papai se sentou ao meu lado e contou sua experiência fracassada ao visitar recentemente Caçapava, a cidadezinha do interior onde nasceu. A casa em que seus pais moraram havia sido demolida. A rua em que ele brincava descalço havia virado um imenso estacionamento. E, para chegar ao coreto em que deu o primeiro amasso em uma jovem, acabou preso em um trânsito infernal. E ele foi contando, triste e timidamente, como passou a vida inteira querendo voltar para Caçapava. Como ele seria, então, feliz aos 80 anos, assim como foi aos 8 e aos 18. E como Caçapava não existia mais, nem "a vida pela frente", nem a alegria. Talvez fosse o efeito da medicação, mas o fato é que a gente ama nossos pais acima até daquele Deus acima de tudo (meu pai tem saudade de Caçapava e também do Maluf).

Ontem, em uma loja metida de shopping, pedi por calças fuseau. No mesmo segundo todas as clientes e vendedoras se entreolharam, formando uma espécie de equipe instantânea de bullying irremediável. Uma senhorinha me sorriu e falou: "Elas que se danem, os anos 80 foram ótimos!". Me vi em torno da árvore de Natal na casa dela, segurando o CD de "Dancing Days" que ela certamente me daria. No estacionamento do shopping, notei que seu carro tinha quatro bandeirinhas do Brasil, uma em cada janela.

O fato é que toda pessoa decente já fez, pelo menos uma vez na vida, algo abominável. Eu mesma sou uma beleza de ser humano, mas nos últimos meses, pai do céu, descarrilei bonito. Embebi meus demônios em anfetamina. Peguei todas as crianças rejeitadas na hora do recreio que vivem em mim, todo o meu medo travestido com a camiseta da arrogância e promovi por aí uns showzinhos de horror. Se você teve o desprazer de fazer parte do meu grupo de convivência de 2022, aqui vai meu pedido íntimo e público de desculpas. Não que os envolvidos não possam ser tão trouxas quanto eu, mas estou fazendo minha parte. Que façamos todos, também, a nossa parte no próximo domingo. Os maravilhosos babacas de direita. Os deliciosos imbecis de esquerda. E até os quatro bolsonaristas espetaculares que existem no país. Se ao final de tanto erro a gente conseguir lembrar —e olha que sofremos bastante pra isso— como sabemos ser dignos, terá valido por uma nação inteira.

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