Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Todas

Como ganhar dinheiro e perder tudo

A pior coisa que existe no mundo é gente que vai comprar um negócio e compra um só

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São duas frases inesquecíveis. Lembrei mais uma agora –são três frases memoráveis sobre dinheiro. Aos 13 anos, perguntei para a minha mãe por que meus avós (seus pais) morreram daquele jeito. Estavam bem, ficaram doentes repentinamente e morreram aos 73 anos, com um intervalo de menos de um ano entre eles.

Minha mãe respondeu: "Porque somos pobres. Rico não morre". Ela não estava errada. Tenho amigos que nasceram no bairro ao qual demorei 26 anos para chegar e que ostentam, como se fossem sortudos, seus avós de mil anos. São pessoas com quase 50 anos que ainda têm avós! Não por muito tempo, pois eu sempre planejo assassiná-los. Odeio esses velhotes decrépitos de 200 anos mantidos pela "tecnomagia desumana" de hospitais e planos de saúde caríssimos.

Outra sentença inesquecível ouvi quando minha mãe, na porta do elevador, esperava meu pai chegar de uma farmácia. Eu estava toda encatarrada (e assim permaneço), e ela pediu que ele fosse correndo comprar soro fisiológico. Meu pai chegou com uma única e pequena garrafinha de soro e entregou em sua mão. Minha mãe olhou para mim –eu devia ter uns cinco anos– e falou: "Nunca se case com um homem que volta da farmácia com apenas um soro. Nunca. A pior coisa que existe no mundo é gente que vai comprar um negócio e compra um só". Ela pediu divórcio poucos meses depois.

Por fim, me lembro da época em que eu era estagiária de redação (ou seja, ganhava zero reais) e era chamada de "brilhante, genial" todos os dias pelos meus chefes publicitários, até ser selecionada, entre mais de mil jovens, como uma das dez melhores redatoras do país. Cheguei em casa esfuziante. Minha mãe estava comendo uma maçã e me disse, de boca cheia: "Até quando você vai acreditar em gente que te dá elogio e não te dá salário? O nome disso é exploração, minha filha. E esses filhos da puta são ótimos em fazer isso com meninas inocentes e deslumbradas".

Ilustração de Carvall mostra um cifrão verde com rosto de cobra no lado direito da cena. Uma sombra cinza se projeta para o chão, à esquerda.
Carvall

Eu me tornei uma pessoa obsessiva por dinheiro (e pela minha mãe. Te amo, mãe). Acordava e ia dormir pensando em como ganhar dinheiro. Peguei horror de todos os artistas que acham que são mais artistas porque não ganham dinheiro. Comecei a fazer mestrado, mas larguei e transformei tudo o que estudei em cursos rentáveis. Entendi, muito nova, que para me manter com dois ou três projetos em um mercado incerto e competitivo (e sucateado) eu deveria ter sempre 387 novas ideias e 219 frentes de trabalho. Bem antes da moda do publicitário que quer ser roteirista de TV porque cansou de derramar seu talento dramatúrgico em anúncios de banco, eu já era roteirista da Globo. Uma década antes de a Globo demitir todo mundo (e a galera de boas na praia), eu já sabia que isso aconteceria e trabalhava para (e com) revistas, jornais, cinema, teatro, livros, palestras. Em 2019, eu comecei a minha saga de criar uma quantidade indecente de podcasts.

Nada disso isoladamente me deu dinheiro (o que é uma grande sacanagem), mas a soma desenfreada de tanta coisa sim. Comprei a casa em que minha mãe mora, comprei a minha casa (que fantasio ser maior do que a herança que os avós de 300 anos vão deixar), dei e adquiri carros, joias, cachorros, tratamentos psiquiátricos, alimentos orgânicos, festas, empregos, sustentei uns namorados, me desdobrei para bancar os planos de saúde da família (porque eu quero esses desgraçados mais vivos que os zumbis banqueiros de 200 anos), virei a louca dos resorts "roteiro de charme" e devo ter colocado fio de ouro até para levantar meu sovaco.

E aí acabou. Acabou meu dinheiro. Acabou. Há meses vivo sem pensar (penso o dia inteiro) nos juros que acumulo no banco (o que significa que ainda deve piorar). E essa sensação de torrar o dinheiro. De tacá-lo pela janela. De tacar fogo nele. De rasgar o manto, o papel-moeda sagrado que me garantiria a não morte estúpida e precoce e o respeito tão esperado de mamãe. Essa sensação é horrível, medonha, assustadora. Às vezes a liberdade vem das formas mais estranhas.

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com dois meses de assinatura digital grátis.

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