Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
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Diga não ao escritor

Que grandes são os artistas que recusam convites sem jogar no seu colo o pavor que ostentam de não serem amados

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Uma atriz me encontra num casamento e me pergunta se por acaso tenho guardada no computador alguma ideia de filme que encaixe em seu perfil de trabalho (que ela autodefine como "cinema cabeça com público"). Respondo que sim (tenho 358 sinopses e 428 projetos sobre temas variados e para públicos diversos porque me recuso a tratar minha ciclotimia e ainda espero ser financeiramente valorizada por não conseguir parar jamais). Chego em casa de madrugada e mando o texto para a atriz. Ela rebate com corações, foguinhos e estrelinhas: "Legal, te respondo até sexta!". Passou um ano e nada.

Eis que semana passada eu a encontro no shopping. Ela me vê, faz aquela cara de quem acaba de ser pega por desviar dinheiro da Unicef (pra quê? Tá tudo bem, era só um roteiro meio ruim) e lança seu corpo escada rolante abaixo. Não me refiro a uma queda, com ossos quebrados. Ela é atriz de teatro e tem domínio sobre o corpo. Desaparece completamente. Eu dou risada e entro na farmácia para comprar minha milagrosa injeção monoclonal contra enxaqueca já sabendo que vou comprar a loja inteira (não aguento aquela quantidade indecente de aguinhas boricadas, creminhos mentirosos, vitaminas que não prestam para nada e pastilhas de antiácido redondinhas me olhando e pedindo colinho). A farmácia é o meu Carnaval. Esqueço da atriz, até porque tem mais uns 78 atores (e 98 diretores e 107 produtores) que amam meu trabalho e acham que "essa ideia é realmente boa, será que você tem agenda para começar semana que vem?", mas nunca mais retornam.

Só que a atriz, coitada, foi comer uma empanada antes de ir embora e acabou cruzando comigo outra vez. Tensíssima, jogando o cabelo no rosto, falando com ninguém pelo celular e tentando disfarçar seu charmoso imenso nariz atrás de uma garrafinha de suco de uva orgânico. Meu deus, pessoal das artes, que medo é esse de dizer não?

Aprendam com Marília Gabriela, Selton Mello e Astrid Fontenelle. Em momentos diferentes, já convidei os três para me dar entrevistas. Na mesma hora responderam: "Querida, agradeço muito, mas NÃO". Foi emocionante. Você consegue imaginar uma dessas três figuras grandiosas se jogando escada rolante abaixo com medo de olhar outra pessoa nos olhos e dizer não? Não disseram "quem sabe mês que vem quando eu entregar esse projeto que está me tomando tempo demais e vamos tentando uma hora dá certo com certeza tá meu anjo". Responderam "NÃO". Que grandes pessoas são os artistas que podem, com clareza e assertividade, recusar convites sem jogar no seu colo o pavor que ostentam de não serem amados.

Selton Mello em cena de 'O Auto da Compadecida 2', de Guel Arraes e Flávia Lacerda
Selton Mello em cena de 'O Auto da Compadecida 2', de Guel Arraes e Flávia Lacerda - Laura Campanella/Divulgação

Meus amigos que hoje são roteiristas nos Estados Unidos me contam que estão maravilhados com a capacidade dos gringos de meter logo um "nem a pau" na conversa. Depois de décadas de enrolação no Brasil, se sentem valorizados: "Poxa, obrigado mesmo por não querer trabalhar comigo de jeito nenhum, que sorte ter te conhecido, cara". No Brasil, eu sigo tendo meu nome muito mais bajulado do que minha chave Pix. Muitos dizem que "seria um sonho trabalhar comigo, mas devo ser cara". Meu amigo, se você sonha barato, eu não tenho nada a ver com isso.

Outros vão além no papinho furado e me garantem: "Saia amanhã de onde você está porque este é um projeto que vai tomar todo o seu tempo e temos três financiadores europeus", mas só voltam a lembrar de mim quando precisam de divulgação para a série ou para o filme já lançados.

Tanta dificuldade para dizer não (e tanta enrolação e bajulação desmonetizadas) é porque não querem fechar portas, não querem parecer arrogantes ou têm medo de magoar os autores? Olha, magoado o escritor já nasceu, ou teria escolhido outra profissão. Apenas parem! Digam não e comam empanadas de shopping em paz! (E não me peçam mais divulgação de trabalhos que não escrevi, seus putos do inferno.)

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