Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Chato pra cacete

Como contar para minha amiga que eu preferia estar com dengue a estar ali com ela?

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Essa peça de teatro é mais ou menos assim: entra um ator falando latim, daí entram outros falando grego, tupi, marciano, sabe Deus, estou chutando aqui porque não faço ideia. Não entendi nada. Então entra um casal que faz uma performance-dança-guerra silábica. Ela diz "bá". Ele responde "cá". Eles vão até o zá. Voltam. Vão até o zá de novo. Os atores são incríveis. Eu veria cinco minutos desse casal de atores e torceria para que eles ganhassem um superprêmio internacional. Mas lembro que a peça tem quase três horas e me dá vontade de morrer. Já passou meia hora e eu ainda não entendi nada. Uns urros, uns gritos, nada que me emocione. Eu já não sei mais se estou no escuro de uma plateia lotada ou tendo um AVC no chão da sala. Os segundos estão durando séculos. Como contar para a amiga que conseguiu os ingressos disputadíssimos, intelectualíssimos, que eu preferia estar com dengue a estar ali com ela? Minha amiga e o marido vibram, estão amando. Estão mesmo? Ela me confessa baixinho que está odiando. Daí tem uma cena dramática que só uma única pessoa, que fala grego, entende. Uma piada em latim e só uma senhora que dá risada. Começa uma dança interessante. Eu ficaria um tempo vendo a dança. Mas, se eles abrem a boca, eu preciso da história. E a única palavra que eu entendo da peça é a que fica gritando dentro da minha cabeça: CHATO. Chato pra cacete. Pedante pacas. Eu quero gritar CHEGA.

plateia de teatro com poltronas vermelhas
Interior de um teatro - Unsplash

A música é boa, o baterista é a melhor coisa, dá um certo alívio quando penso que é um show. Eu estou tentando gostar. Eu preciso gostar. Pega bem gostar desse diretor. Aff, já estou velha pra isso. Estou achando chato pra cacete. Não quero estar aqui e pronto.

No intervalo, as pessoas que me acompanham estão maravilhadas com a peça. Genial como sempre! Penso em contar que, na peça anterior do mesmo diretor, eu saí em 40 minutos. Achei insuportável. Mas nessa ele se superou. E, de repente, eu falo. Eu confesso. "Chato pra cacete." E vou embora. Eu exponho. Eu consigo. Janela aberta e vento no rosto. Descubro, no dia seguinte, que a maioria deles também não aguentou e correu para casa em seguida.

Depois que fiz 42 anos, que fui mãe, que me separei, que sobrevivi a uma H3N2 que me deixou dez dias péssima, que sobrevivi a uma pneumonia pesada durante minha infecção por Covid, depois de quase quatro anos de Bolsonaro, de mais de quatro anos sem dormir porque minha filha acorda a noite toda –não sei exatamente o que foi, mas eu não suporto mais fingir que uma coisa chata não é intolerável.

Antes eu tinha pena daqueles que não podem usufruir de uma vida que lhes dá algum prazer. Então achava que equilibrava o cosmos aturando os "seca-pimenteira". Os atendia, recebia em casa. Qual era o meu problema? Imagina se tivéssemos lido um livro a cada vez que escolhemos fazer coisas apenas por culpa? Como diz uma amiga, eu sempre fui tão desesperada pelo amor e pela aceitação dos outros que tolerava absurdos. E nisso quantas relações, viagens, trabalhos, parcerias, horas perdidas em festas ou almoços ou assinando o Estadão só porque a menina já me ligou 675 vezes e baixou o preço pra R$ 2.

Achei nada demais o novo do Paul Thomas Anderson. Agora eu falo. Achei indigesto o filme de uns colegas, que têm certeza que arrasaram no discurso progressista, mas produziram uma história assustadoramente machista. Eu levanto e vou embora. Não é educado. Provavelmente começarei a perder trabalhos e pessoas. Mas eu cheguei naquela idade maravilhosa em que a gente não perde mais tempo.

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