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O funk trouxe liberdade, e pessoas periféricas ficaram milionárias, diz Ice Blue, do Racionais

Rapper defende a vertente ostentação do gênero, afirma que as críticas às letras putaria são hipócritas e conta que o próximo álbum do grupo de rap terá contribuições de artistas como Hariel e Criolo

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Bruno Santos/ Folhapress

O rapper Ice Blue - Bruno Santos / Folhapress

"Quando as pessoas começam a falar de revolução, quando as pessoas te colocam como um revolucionário, você tem que ter cuidado com a energia que você vai transmitir", diz o rapper Ice Blue, integrante do Racionais MC’s, ao se recordar de um incidente que ocorreu em um show do grupo em Bauru, no interior de São Paulo, em 2005.

No meio da apresentação, o corpo de um homem morto foi jogado aos pés do grupo — formado por ele, Mano Brown, KL Jay e Edi Rock. O jovem foi assassinado a tiros após uma confusão na plateia.

Com letras que denunciavam a vida permeada por violências na periferia de São Paulo, os Racionais se tornaram um marco não só na cena do rap, mas também na cultura nacional. "As pessoas nos colocaram nesse lugar de incentivar [a violência], de fazer apologia, mas eles não sabem o tanto que a gente ponderou", afirma.

Bruno Santos/ Folhapress
O rapper Ice Blue - Bruno Santos/Folhapress

"Tem música que o Brown escreveu [naquela época] e que a gente deixou de gravar. Está lá [guardada] até hoje. Ali tem revolta. A gente tinha consciência de que, se a gente lançasse, poderia dar um problema muito sério. É uma coisa que a gente sempre conversou entre nós. Sempre um ponderando com o outro, porque era muita raiva e indignação."

Paulo Eduardo Salvador, nome de batismo do rapper, não sabe explicar como o grupo chegou ao tamanho que chegou. Mas agora busca passar sua experiência para a geração mais nova, que é hoje quem ocupa o topo das paradas musicais. Além de ser empresário, ele assumiu neste ano o cargo de vice-presidente da GR6, a maior produtora de funk do país.

A gravadora tem em seu catálogo mais de cem artistas, incluindo nomes do gênero como MC Livinho e Hariel. E tem investido no trap, com artistas do momento como Vulgo FK. "A rapaziada é uma máquina de fazer música. Eles têm uma facilidade que é uma coisa que a gente dos anos 1990 [não tinha]. O processo era mais elaborado", afirma Ice Blue.

"A internet chegou para ser um braço do movimento urbano, que não tinha distribuição. O acesso foi democratizado. Sem a internet, ainda estaríamos na mão dos caras da televisão, do rádio e das grandes gravadoras. Hoje, eles procuram a gente para que nossos artistas participem dos programas deles. A lógica foi invertida."

O rapper Ice Blue na sede da produtora de funk GR6 Explode, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

Ice Blue recebeu a coluna para uma entrevista na sede da GR6 Explode, localizada na zona norte da capital paulista. O espaço possui 12 estúdios de gravação de voz, além de um complexo para a filmagem de trabalhos audiovisuais. A gravadora diz lançar, em média, 150 produções por mês, e 15 videoclipes por semana.

"Você faz a música, daqui a pouco está do outro lado [dos estúdios] fazendo um clipe. Isso pode acontecer em horas. Com essa rapidez, os artistas acabam fazendo muita música, mas não desenvolvendo um projeto. Sempre falo para a rapaziada: ‘Você quer ser um artista passageiro ou você quer deixar um legado?’. Com a minha vinda pra cá, os moleques estão valorizando mais as entregas de shows. Estão entendendo o que é ter um set, um álbum, uma produção elaborada", explica.

O seu principal objetivo na GR6 é o que ele descreve como "profissionalização do funk". "O gênero está no topo das paradas musicais. O canal do YouTube da GR6 tem mais de 40 milhões de inscritos e 10 milhões de acessos diários. Agora, a gente quer implantar qualidade", diz. "Quando um gringo olha pra cá, ele respeita nossos números, mas ainda coloca defeitos [na parte profissional]. O mercado europeu está vendo. A gente tem que melhorar a nossa qualidade para não perder o timing."

Questionado sobre a exportação do gênero, encabeçada por Anitta, que está em turnês no exterior com seu CD mais recente, "Funk Generation", Ice Blue diz que a carioca "elevou a carreira para outro nível".

"A Anitta aprendeu a falar outras línguas. Ela tem meu respeito por levar essa sigla de ‘eu sou funkeira’ para o mundo. É uma abertura de portas. Não tem como negar. Agora, quem tem a expertise dela? Quem está pronto para esse jogo?"

Em entrevista à Folha em agosto de 2023, KL Jay falou que o rap virou "meio fábrica de bolacha", com "todo mundo usando Auto-Tune [um programa que altera a voz]". "Isso é uma visão dos caras dos anos 1990", rebate Blue Ice ao ser questionado sobre a declaração do seu companheiro de Racionais.

"Aprendi que o Auto-Tune é um estilo do funk, do trap. Para o KL Jay, quem usa Auto-Tune não sabe cantar. Vendo de perto, entendi que está dentro do conceito. Também briguei no começo do meu rap, quando o técnico [de gravação] queria tirar o ruído do meu som e eu não queria deixar."

"A ‘fábrica de bolacha’ talvez seja pela agilidade. Mas é um movimento livre, diferente do nosso [do Racionais], que tinha esse compromisso com a conscientização. O compromisso deles é fazer música para dançar, namorar, é outra parada."

"‘Ah, é putaria’", diz ele, citando as críticas às letras sensuais e explícitas das canções. "O Tchan era putaria nos anos 1990 e passava na Rede Globo. Quantas meninas não dançavam na boquinha da garrafa?"

Ice Blue diz que o rap, lá nos anos 1990, trouxe "esse orgulho de ser preto, favelado, periférico". "Hoje, você vê um monte de cara, até playboy, com camiseta escrito: ‘Eu sou favela’. Agora, a próxima página é o que o funk vem fazendo. Deixar a rapaziada rica", diz.

"Se você andar aqui no corredor [da GR6], é só tênis de R$ 20 mil, jaqueta de R$ 30 mil. Os caras falam em ‘ostentação’, mas não é isso. O funk deixou as pessoas periféricas milionárias, fazendo os moleques sonharem com coisas que na minha infância, não tinha o direito de sonhar. Não existia."

"O funk trouxe essa liberdade. Um monte de preto andando de carro [de luxo]. Isso aí é o meu orgulho. Quando eu comprei uma moto zero, cheguei no estacionamento do [estúdio dos] Racionais e meus três parceiros fizeram cara feia para mim. ‘Cara, você comprou essa moto? O que você tem, você está louco?’", recorda. "Quando nós [Racionais] começamos a ganhar dinheiro, fomos criticados: ‘O Brown se vendeu’".

O rapper diz que é preciso "jogar o jogo". "Não adianta eu me mudar para um condomínio de luxo e ficar empinando moto lá dentro. Se quer continuar com essas paradas, fica na quebrada. O cara ganha dinheiro e acha que isso é afrontar", afirma.

"Afrontar é você entrar no restaurante, saber pedir, saber usar os talheres, escolher o vinho certo e deixar quem está do seu lado em choque porque você tem esse conhecimento", exemplifica.

Ice Blue torce o nariz ao falar do movimento de artistas de outros gêneros historicamente mais distantes do funk, como o sertanejo, que agora buscam parcerias com MCs. "Eles vêm flertando e gravando com o funk pelos números. O movimento do funk é muito generoso. Na minha concepção, eles deveriam ser bloqueados por um tempo. E todo o preconceito que a gente passou? Quantos eventos de sertanejo que não tinham música urbana?"

O rapper Ice Blue na sede da produtora de funk GR6 Explode, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

Atualmente, a Polícia Federal investiga o sócio da GR6 Rodrigo Inácio de Lima Oliveira por supostamente orquestrar um esquema de lavagem de dinheiro para o PCC —ele nega. "Qualquer pessoa que tinha uma marca a proteger, correu da GR6 naquele momento. Não quis se associar. Foi exatamente no momento em que eu virei vice. Eu associei meu nome para, silenciosamente, mostrar que isso [as acusações] são uma mentira", defende Ice Blue.

Antes de chegar à sede da GR6 para esta entrevista, ele estava nos estúdios trabalhando no próximo álbum do Racionais, que tem previsão para estrear ainda neste ano. "O disco provavelmente vai ter mais de 20 faixas. É o primeiro trabalho que a gente faz com tantas participações." Entre os artistas convidados estão Seu Jorge, Hariel, Ed Motta, Criolo, Djonga e Falcão.

"É o jeito novo de fazer música. Você faz uma parte, chama um amigo, todo mundo entra no jogo. A gente quer fazer as coisas do modo atual", responde Ice Blue sobre o que levou o quarteto a chamar tantos artistas para o trabalho, que já tem quatro videoclipes gravados.

Questionado se a raiva, tão pulsante no início de sua carreira, diminuiu, Ice Blue não demora a responder: "Não. Ela continua. Não mudou nada. O racismo está aí. A polícia continua nos matando. A direita ficou mais à direita. A esquerda está menos à esquerda. Todos os setores têm dificuldade de falar com o movimento negro."

"Mas, hoje, a raiva é mais consciente, inteligente, estratégica. Quanto mais periférico, bem-sucedido, sabendo jogar o jogo, aí é que nós vamos quebrar esse paradigma."

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